Entre Sirlene e Vitória: quatro décadas de feminicídios no Brasil

Mais de quatro décadas de diferença, dois crimes de feminicídio que mostram a persistência da violência contra a mulher no Brasil

Ela tinha nome, identidade, rotina. Tinha 17 anos e carregava consigo os sonhos de uma juventude que mal havia começado a ser vivida. Mas, como tantas outras meninas e mulheres no Brasil, teve sua vida interrompida de forma brutal. O assassinato de Vitória Regina de Sousa, em Cajamar, São Paulo, não foi um caso isolado. Foi mais um entre os 1,5 mil homicídios que vitimam mulheres todos os anos no país. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2023, foram registrados 1.463 casos de feminicídio, o que equivale a uma mulher assassinada a cada seis horas no Brasil. O dado corresponde a um aumento de 1,6% em relação a 2022 e é o maior desde a criação da lei que caracteriza esse crime. E por trás de cada número há uma história.

Na noite de 26 de fevereiro de 2025, Vitória voltava do trabalho em um shopping da cidade. Em mensagens trocadas com uma amiga, relatou estar com medo: percebia que estava sendo seguida. Pouco depois de descer do ônibus, foi vista por testemunhas sendo acompanhada por um carro com quatro homens. Então desapareceu. Por dias, sua família e a comunidade se mobilizaram em uma busca desesperada. Drones, cães farejadores, agentes de segurança e voluntários vasculharam cada canto de Cajamar. A esperança, no entanto, foi substituída pelo luto no dia 5 de março, quando seu corpo foi encontrado em uma área de mata, em avançado estado de decomposição e com sinais claros de violência.

A história de Vitória é também a história de muitas outras, muitas vezes, tratadas como mais um dado em boletins policiais. Thais Gabriely Aniskievicz, Assistente Social do Núcleo Maria da Penha (Numape-UEPG), revela a violência de gênero no contexto histórico brasileiro. “Um crime de feminicídio é mais um reflexo de algo profundo e estrutural numa sociedade marcada pelo machismo e pelo patriarcado, que historicamente colocam a mulher em uma posição de submissão, controle e silenciamento”, destaca a profissional.

A história parte de Vitória Regina de Sousa, crime ocorrido em 2025, para lançar luz sobre uma tragédia que se repete de formas distintas, todos os dias. Muito antes de Vitória, em 1988, outra jovem teve sua história brutalmente interrompida: Sirlene Pires, de apenas 20 anos, moradora do interior de Palmeira (PR), longe das manchetes nacionais, das redes sociais e de outros recursos tecnológicos. Mais de três décadas anteriores ao caso Vitória, em uma época em que o feminicídio nem tinha nome, mas carrega marcas assustadoramente parecidas com casos atuais. As duas histórias revelam o quanto a violência contra a mulher continua sendo naturalizada ao longo do tempo. É preciso um caso como o de Sirlene acontecer para surgirem as demais vítimas.

Crédito: Amanda Stafin

De acordo com o Mapa da Violência, em 1980 o Brasil registrou 1.353 homicídios de mulheres, o equivalente a uma taxa de 2,3 mortes violentas a cada grupo de 100 mil habitantes. Esse índice subiu para 4,8 em 2013. O Atlas da Violência 2017 (IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública) revela que em 2015, quando o feminicídio passou a ser reconhecido como crime, a taxa total de homicídios de mulheres foi de aproximadamente 4,4 por 100 mil. Dez anos depois, em 2024, esse número chegou a 1,4 de vítimas. “Essa lentidão em adaptar leis, práticas institucionais e políticas públicas auxiliou a naturalização da violência e a inserção da mulher no ciclo da violência por décadas.”, relata Thais.

A faísca da investigação: do boato à busca por respostas

Foi em uma conversa familiar que surgiu, pela primeira vez, o nome de Sirlene Pires, assassinada em 22 de novembro de 1988, no interior do município de Palmeira, no Paraná. A escolha do caso não foi por acaso. A conexão pessoal com a história se revelou logo no início da apuração: Jaci Pires, irmã da vítima, aceitou relatar o que viveu. A conversa abriu caminho para novas fontes, como Rubens Woinarovicz, conhecido da família e testemunha próxima dos acontecimentos da época.

Com base nessas entrevistas iniciais, a investigação tomou forma. O ponto central do trabalho passou a ser o processo criminal arquivado no Cartório Criminal do Fórum de Palmeira. Mesmo sem versão digital, o acesso ao processo físico, fotografado página por página, possibilitou uma análise aprofundada dos documentos. Entre os papéis amarelados pelo tempo, estão laudos periciais, depoimentos e fotografias do caso, registros que sobrevivem como testemunhas silenciosas de uma história ainda pouco contada.

O processo com mais de 100 paginas revelam arquivos de 1988 a 2018. Foto: Amanda Stafin

A apuração parte desses registros para reconstruir o que aconteceu na manhã de novembro. Depoimentos colhidos à época, por vezes contraditórios, se cruzam com novas conversas realizadas com familiares, vizinhos e moradores que ainda se lembram do crime. A intenção é reconstruir uma linha do tempo que percorra desde o dia do assassinato até o desfecho judicial.

Além da reconstrução factual, a narrativa propõe um olhar mais amplo, refletindo sobre o contexto de violência contra a mulher e as limitações investigativas da época. Para isso, serão abordadas legislações posteriores ao crime, a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) e Lei do Feminicídio (nº 13.104/2015) Mais do que recontar um crime, a proposta é fazer justiça à memória de Sirlene. Revisitar sua trajetória é também questionar o silêncio institucional que paira sobre casos como o dela. Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata das primeiras investigações do caso Sirlene Pires. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.

Ficha técnica

Produção: Amanda Stafin

Edição e publicação: Juliane Goltz e Gabriele Proença

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

 

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