“Gamificação” nas redes sociais e a relação com os jogos de azar

Plataformas de vendas deixaram de ser vitrines e tornaram-se ambientes de jogos online

O fenômeno da gamificação em plataformas digitais mostra como estratégias originalmente pensadas para o universo dos jogos estão sendo apropriadas pelo mercado de consumo. As plataformas oferecem recompensas, sistemas de pontuação, desafios e missões diárias que estimulam a permanência dos usuários dentro do aplicativo. À primeira vista, parece apenas uma forma divertida de entretenimento. Porém, possui muitas semelhanças com a lógica dos jogos de azar, já que ativa a necessidade psicológica de completar tarefas. Em ambos os casos, há um ciclo repetitivo: expectativa, recompensa (ou frustração) novamente.

Valéria de Oliveira (nome fictício) é uma jovem de 22 anos. Ela utiliza as redes sociais para conversar com os seguidores sobre o dia a dia. Compras de roupas, acessórios e cosméticos estão entre as principais pautas. “Quando faço  uma compra por meio de plataformas digitais, eu fico muito feliz e eufórica. Quando a euforia passa, fico pensando no momento em que meus produtos irão chegar”

De acordo com a psicóloga Nathalia Rocha, os jogos de azar e a gamificação das plataformas digitais utilizam a variabilidade de recompensas. O usuário não sabe qual será o resultado e muito menos qual será a recompensa e isso gera o entusiasmo para continuar. “Nos jogos de azar, o apostador ganha (ou perde) dinheiro. Já no aplicativo, são descontos, cupons ou vantagens”, aponta.

Valéria entra diariamente nas plataformas de vendas para realizar o check-in e receber a “moedinha” de desconto. “É quase que uma regra, né? Eu entro nos aplicativos todos os dias, faço o check-in e recebo o benefício. Quando eu vejo uma boa quantidade de pontos, sempre compro algo para não perdê-los. Às vezes, essas compras são impulsivas”,

O que é uma gamificação?

De acordo com o e-book Entendendo e aplicando a gamificação: o que é, para que serve, potencialidades e desafios, gamificação pode ser entendida como “a utilização de elementos de jogos em contextos fora de jogos, isto é, da vida real […] A gamificação usa a estética, a estrutura, a forma de raciocinar presente nos games, tendo como resultado tanto motivar ações como promover aprendizagens ou resolver problemas, utilizando as estratégias que tornam o game interessante”.

O economista Josué Coimbra aponta que a gamificação é uma estratégia de marketing legítima. “Ela busca transformar atividades cotidianas em experiências mais atrativas, utilizando elementos como pontos, rankings e recompensas. Mas é preciso que a população tenha cuidado, pois os jogos podem viciar e a linha entre jogo saudável e vício é tênue”.

Relação com as casas de apostas e jogos de azar: o sistema de recompensas

Assim como em casas de apostas físicas ou digitais, a experiência da gamificação é pautada em elementos de recompensa imediata. “O usuário não sabe quando vai receber um cupom, um desconto ou uma promoção especial e essa imprevisibilidade mantém o engajamento”, afirma a psicóloga Nathalia.

Além dos check-ins, a cada nova interação, seja ao girar uma roleta virtual ou participar de torneios de jogos, o usuário acredita que pode “ganhar” alguma coisa, como um desconto em compras, pontos acumulados ou benefícios. Esse processo ativa no cérebro o chamado sistema de recompensa dopaminérgico, ou circuito da dopamina. Esse sistema de recompensa é, inclusive, o mesmo que é gerado em práticas potencialmente viciantes, como apostas e jogos de azar.

Tudo isso é pensado para manter o usuário dentro do aplicativo o maior tempo possível. Josué afirma que  “quando alguém recebe uma recompensa pelo tempo na plataforma, provavelmente o tempo dele é o produto”.

O ranking de pontuações fica visível na interface das plataformas e, com isso, os consumidores percebem que se jogarem cada vez mais, maiores serão as chances de conseguir cupons de benefícios ou moedas para descontos. Os consumidores sentem-se motivados a continuar jogando e interagindo na plataforma. Esse comportamento se aproxima com o que ocorre nas máquinas caça-níqueis ou em aplicativos de apostas online. O usuário é levado a jogar mais uma vez em busca de um “prêmio maior” ou à simples satisfação de vencer um desafio.

As plataformas de vendas utilizam recursos que ativam a urgência de consumo. “Quando eu vejo que meus pontos e cupons estão expirando, realizo compras, muitas vezes desnecessárias, apenas para não perder os benefícios”, diz Valéria. A jovem afirma que houve uma vez em que ela comprou maquiagens que estavam sendo anunciadas na promoção. Foi uma compra impulsiva, pois ela não utilizou os cosméticos. “Se as maquiagens não estivessem em promoção, eu não compraria”.O economista Coimbra indica que os consumidores mais expostos são os mais jovens, pois, eles cresceram no ambiente digital e, portanto, essas práticas já são normalizadas. “A gamificação pode estimular compras impulsivas e criar a sensação de que o consumo é um jogo em que quanto mais você participa, mais você ganha”,

Historicamente, o termo “usuário” é utilizado para referenciar pessoas que consomem substâncias psicoativas; entretanto, também é utilizado para se referir às pessoas que possuem vícios em jogos de azar. “A semelhança não é coincidência: em todos os contextos existe a ideia de consumo contínuo e dependência. Assim como a droga, a rede social ou o aplicativo quer manter o indivíduo conectado e consumindo, quase sem perceber”, diz a psicóloga.

Recursos visuais e a urgência do consumo

Além da gamificação, as plataformas de vendas exploram o recurso das cores intensas e vibrantes em seus layouts. Tons de laranja, vermelho, azul e amarelo captam a atenção do consumidor, com a finalidade de estimular o clique imediato.

A estética visual também dialoga com o universo dos jogos de azar. Cassinos físicos e online, por exemplo, utilizam luzes vibrantes e cores fortes para manter os jogadores imersos no ambiente, sem notar a passagem do tempo. Nos aplicativos de compras, as cores funcionam como gatilhos visuais que reforçam a sensação de adquirir produtos o mais depressa possível.

As cores vibrantes estão presentes em casas de apostas. Crédito: Giovana Guarneri.

A jovem Valéria comenta que se as cores não fossem tão intensas e contrastantes, o impacto do consumismo não seria o mesmo. “Os aplicativos utilizam de recursos visuais muito chamativos, né? Os avisos de ‘Só hoje!’, ‘Imperdível!’ e ‘Último dia da promoção!’ fazem a gente acreditar que é a nossa última oportunidade de adquirir aquele produto por um preço barato”

O economista avalia que a gamificação tem o risco de criar consumidores dependentes. Casos como o de Valéria são grandes exemplos disso. “Estratégias que exploram mecanismos de vício podem comprometer a saúde financeira e psicológica do usuário”,

Este texto integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo destaca a relação entre a gamificação das plataformas online com os jogos de azar. Ambas as situações são viciantes e ativam o sistema de recompensas na mente do consumidor/usuário. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.

Ficha Técnica 

Produção: Gabriela Denkwiski

Edição e publicação: Eloise da Silva, Fernanda Matos, Gabrieli Mendes e Giovana Guarneri.

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão e publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

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