Em 2021, jornais e rádio divulgaram versão policial, sem ouvir familiares ou apresentar provas
A justiça de Almirante Tamandaré julgou improcedente a ação movida por Claudimir Ferreira do Nascimento contra a Rádio Mundi Paraná LTDA, empresa de comunicação ligada ao grupo do deputado estadual e ex-prefeito de Ponta Grossa, Marcelo Rangel. O caso envolve a cobertura jornalística da morte do filho, Willian Lucas Souza Nascimento, em abril de 2021.
Na ocasião, a rádio noticiou, com base em informações divulgadas pela Polícia Militar, que o jovem havia morrido em confronto durante uma operação contra o tráfico de drogas. A família contesta a versão. O processo pedia indenização por danos morais e direito de resposta, alegando que a reportagem prejudicou a memória do jovem e aumentou o sofrimento da família. A decisão, assinada em fevereiro de 2025, entendeu que não havia provas suficientes para comprovar falsidade nas informações transmitidas e declarou a decadência do direito de resposta, que precisa ser solicitado em até 60 dias da publicação.
Na sentença, o juízo destacou que a emissora apenas reproduziu dados oficiais da Polícia Militar, os quais possuem presunção de veracidade. Além disso, outros veículos de comunicação também divulgaram a mesma versão do caso.
A mãe de Willian, Rogéria Souza Nascimento, apresenta uma narrativa diferente da que foi divulgada nos jornais. Ela lembra que a abordagem policial começou com intimidações. “Um dos policiais olhou para o Willian e disse: ‘se eu te encontrar hoje, eu te mato’. Meu filho chegou a gravar o enquadro. Teve um menino que estava no bar e foi tão espancado que precisou ser carregado pelos colegas”.
Segundo Rogéria, Willian tentou fugir para casa, mas não conseguiu chegar. “Ele já estava perto de casa quando atiraram nele. Eu sempre dizia: ‘filho, carregue sempre sua identidade’. E ele me respondia: ‘mãe, não devo nada a ninguém. Sei meus documentos de cabeça’”. Ela afirma que sempre teve medo de que a cor da pele tornasse o filho um alvo. “Eu tinha muita preocupação com isso, ainda mais aqui no Sul. O preconceito contra gente preta é muito forte. Você, no meio dos colegas, vira o alvo perfeito se acontece alguma confusão”, diz.
A dor da perda foi agravada no dia seguinte, quando Rogéria leu as manchetes sobre o caso. “Acordamos e já estava nos jornais que meu filho era traficante, que estava armado com uma pistola que custava mais caro que o nosso carro. Como assim? Da onde tiraram essa arma? É sempre a mesma história: colocam os meninos pretos como traficantes”, desabafa.
Em muitos veículos de comunicação, a versão da Polícia Militar foi apresentada como fato consumado, sem que familiares, testemunhas ou especialistas fossem ouvidos. Na transmissão ao vivo, apresentadores chegaram a vincular a morte de Willian ao tráfico de drogas e até enalteceram a ação policial. Marcelo Rangel chegou a declarar: “ponto para a polícia”.

Ao lado de seus pais. Caso de jovem morto pela PM há quatro anos em Ponta Grossa. Arquivo: Claudimir Ferreira Nascimento.
O cenário de Ponta Grossa mostra a influência da concentração de mídia e poder político. A Rádio Mundi FM é administrada pela família Rangel, que ocupa posições estratégicas no estado do Paraná. Além de Marcelo Rangel, Sandro Alex, seu irmão, é locutor, deputado federal licenciado e Secretário de Estado de Infraestrutura e Logística do Paraná; e Nilson de Oliveira, pai deles, é sócio da Rede Massa, grupo vinculado ao governador Ratinho Júnior.
Para a família da vítima, a cobertura dos meios de comunicação intensificou a dor da perda. “Chamaram ele de bandido sem nunca nos ouvir. Ninguém perguntou quem ele realmente era”, lamenta Claudimir. Quatro anos após a tragédia, a investigação sobre a morte ainda não apresentou respostas concretas. Enquanto isso, nas páginas de jornais, portais online e nas ondas da rádio, Willian já havia sido julgado e condenado, não pelo sistema judicial, mas por uma narrativa que criminaliza jovens negros e normaliza a violência policial.
No laudo oficial divulgado pela polícia não consta a presença de nenhum aparelho celular. Entretanto, durante a cobertura jornalística da Rádio Mundi e de outro portal local de notícias, supostamente teriam sido apreendidos quatro aparelhos.
Letícia Simões Gomes, doutoranda em Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), estuda a intersecção entre violência policial e desigualdade racial, analisando as tecnologias de policiamento preditivo em contextos de desigualdade racial. “O caso do Willian Lucas é muito parecido com outros casos de violência policial, na medida em que a construção da imagem de criminoso, seja pela narrativa policial, seja pela narrativa midiática, aparece como uma forma de justificação da violência policial letal”, afirma.
Segundo Letícia, a justificativa se apresenta de duas formas. Primeiro, pela aceitação moral que setores da sociedade têm ao recurso de violência letal contra infratores (representada pela máxima, muito disseminada, de que “bandido bom é bandido morto”). Segundo, pelo fato de que a construção da situação como um confronto contra uma pessoa perigosa contribui para o enquadramento do evento como um caso de legítima defesa do policial e que isso contribui para a absolvição do agente. Além disso, depoimentos policiais desfrutam da presunção de veracidade, que constitui um instrumento legitimador da narrativa aos olhos dos demais operadores do direito (juízes, promotores, advogados).
A equipe de reportagem entrou em contato com a Rádio Mundi para obter posicionamento sobre o caso, mas, até o fechamento desta matéria, não houve resposta. O episódio reacende a discussão sobre a responsabilidade dos veículos de comunicação ao reproduzir versões oficiais sem investigação adicional e sobre os limites do direito de resposta, especialmente em casos que envolvem jovens mortos em operações policiais.
Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata de como a imprensa errou ao noticiar a morte de Willian Lucas, ocorrida em 2021. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.
Créditos: entrevista também concedida Rede Nenhuma Vida a Menos.
O Periódico mantém o espaço aberto para respostas e manifestações da Rádio Mundi ou de outros citados na reportagem.
Ficha técnica
Produção: Gabrieli Mendes
Edição e publicação: Gabriela Denkwiski e Juliana Emelly Ferreira da Silva
Supervisão de produção: Hendryo André
Supervisão e publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado
