
Ambiente digital incentiva apostas mais frequentes e valores maiores.
Longe do conforto das casas e da normalidade da rotina existem lugares de fuga. Alguns são grandes, iluminados e chamativos, outros, mais modestos, são simples e por fora não parecem ter nada de especial. Por dentro ambos possuem algo estimulante, algo viciante: o êxtase da vitória. Partidas de pôquer, máquinas caça-níqueis, apostas e jogos de sorte irresistíveis que prometem fortunas para os ganhadores, enquanto escondem perdas incalculáveis, que vão além das financeiras, para os perdedores
O que antes envolvia deslocamento e encontros físicos, mudou de figura. Na solidão e conforto do lar, o acesso às apostas está agora na palma da mão, por meio de aplicativos de celular. Milhares de pessoas apostando juntas online, sem nunca se encontrarem de verdade, almejam a vitória, mas a maioria nunca vai alcançá-la.
Uma pesquisa realizada pelo Departamento de Economia da Universidade de Aveiro, em Portugal, investigou as semelhanças e diferenças entre as apostas online e as presenciais. O estudo foi realizado logo após a pandemia, em 2021, durante o período da pesquisa, houve um crescimento na quantidade de apostadores online, por conta das medidas de distanciamento social e da facilidade de acesso aos aplicativos. Os resultados revelam que em casa as pessoas se dispõem a gastar mais dinheiro, pois perdem a consciência de quanto estão gastando longe de olhares negativos.
Para explicar o que é a ludopatia, nome da doença caracterizada pelo vício em jogos de azar, a psicóloga Marília Berbert fala sobre como fazer a identificação do vício: “o transtorno é verificado quando a pessoa passa a ter prejuízos em todas as áreas da vida, seja social, profissional ou financeira”. A especialista conta que o cansaço e tédio do dia a dia leva as pessoas a apostarem. “Para um viciado é criada uma brecha para apostar ao chegar em casa do trabalho ao, simplesmente, pegar o celular”, relata.
A psicóloga faz uma analogia para explicar como a mudança dos locais de aposta influenciam os apostadores. “Imagine que toda vez que você está com vontade de comer um doce é preciso sair de casa para comprar, mas não há garantia de que o doce estará sendo vendido”, explica. Existe um esforço na ação e não é sempre que a pessoa terá disponibilidade para sair de casa. E se houvesse uma máquina de doces, que só às vezes funciona, dentro da casa, ao alcance da mão? “A ação de tentar comprar um doce se torna rotina, e a cada vez que a máquina não solta uma recompensa o valor da aposta aumenta”, exemplifica. Se no início é preciso apertar o botão duas vezes para conseguir um doce no final é preciso apertar dez, e os valores só aumentam. “O ambiente digital aumentou a frequência com que os jogadores apostam, pois existe maior facilidade e conforto na ação”, complementa.
O Instituto Locomotiva realizou uma pesquisa para identificar o perfil dos apostadores brasileiros. A situação econômica revela ser um fator de destaque ao analisar o público que utiliza os aplicativos online. A grande maioria dos entrevistados, 53%, afirmaram jogar como forma de tentar ganhar renda extra. Com oito a cada dez entrevistados estando na faixa de classe média ou abaixo dela.

Crédito: Ester Roloff
Para além da aposta
O vício não afeta apenas os apostadores, mas também o círculo social do jogador. A pedagoga aposentada Vera Aparecida Oliveira viveu 18 anos com o ex-marido, um apostador ávido, e conta as dificuldades que teve na relação. “No início eu não sabia que ele jogava pôquer, ele saia à noite e voltava apenas de madrugada, eu acreditava que era apenas uma reunião de amigos”, relembra. Mesmo com os pedidos de Vera para que o marido parasse de jogar, isso nunca aconteceu. “A primeira vez que ele perdeu muito dinheiro no jogo tivemos que vender um terreno para pagar a dívida, foi muito triste”, relata.
Vera se emociona ao lembrar de tudo que perdeu com o vício do ex-marido. “Foram três terrenos e dois caminhões que precisamos vender para pagar as dívidas”, lamenta. Além de ter sido a única que trabalhava, Vera conta que o ex-marido não participava da vida em família. “Ele ignorava nossas filhas, nunca ajudava com a casa e era como se só tivesse na cabeça as apostas e jogos”, lembra indignada. Mesmo tentando ajudar o ex-marido, a única solução que Vera encontrou foi pedir o divórcio. “Na época foi difícil, havia muito preconceito para uma mãe solteira com três filhas. Fiz isso por elas, para mantê-las seguras”, afirma.
As empresas de apostas online registradas no Brasil cresceram 734% desde 2021. Os dados vêm de um levantamento feito pelo Datahub, onde é percebida a relação do aumento das apostas virtuais com o período da pandemia. Outra pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva mostra que a quantidade de apostadores no Brasil aumentou mais de 50% apenas no último ano.
Ficha técnica
Produção: Ester Roloff
Edição e publicação: Luiz Henrique Cruz e Anna Perucelli
Supervisão de produção: Hendryo André
Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado