Misoginia cresce na internet e expõe falhas na proteção às mulheres

Em cinco anos, denúncias de violência digital contra mulheres saltam de 961 para 28,6 mil. | Foto: Anna Perucelli

O Brasil enfrenta uma epidemia de ódio online e as mulheres são as principais vítimas. Casos de ameaças, perseguições e exposição de dados pessoais dispararam nos últimos anos, enquanto o sistema jurídico ainda não tem respostas para essa realidade. Em 2023, cartórios de notas registraram mais de 120 mil pedidos de atas notariais (provas usadas em ações de bullying e cyberbullying). O maior número já registrado, com alta média anual de 12% desde 2007.

Entre os crimes de ódio, a misoginia lidera. Segundo a SaferNet, denúncias passaram de 961 em 2017 para 28,6 mil em 2022, totalizando mais de 74 mil registros em cinco anos. A professora universitária e ativista feminista, Lola Aronovich, conhece essa violência de perto. Ela é alvo de perseguições virtuais há mais de uma década. “Recebo ameaças dizendo meu nome completo, RG, endereço. Falam que vão me estuprar e me matar. E o pior: que sabem onde eu moro. Isso muda tudo”, relatou durante palestra no 9º Colóquio Mulheres e Sociedade da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Créditos: Anna Perucelli

Desde 2010, Lola enfrenta grupos misóginos organizados, como por exemplo, Red Pills e Incels, movimentos de homens que defendem a “masculinidade dominante”. “Durante 11 anos, espalharam mentiras sobre mim, me acusaram de crimes que nunca cometi. Um deles foi condenado, mas nunca pagou a indenização.” Além disso, foi vítima de doxxing, que é a prática que divulga dados pessoais de forma maliciosa. “Colocam nossos dados em sites de pornografia, prostituição, swing. É um terror psicológico constante”. 

Diante deste cenário, a resposta jurídica ainda é limitada. A advogada Zilda Mara Consalter afirma que as leis brasileiras não acompanham a complexidade dos crimes digitais de gênero. “A misoginia é uma aversão sem fundamento, mas muito bem sustentada por uma estrutura social patriarcal. Nós naturalizamos muitos desses ataques porque aprendemos a deixá-los passar.”

Nos últimos anos, algumas conquistas foram feitas, como a aprovação da Lei do Feminicídio (2015), da Lei Carolina Dieckmann (2012) e da criminalização do cyberbullying (2024). Em 2018, após o caso da professora universitária, foi criada a chamada Lei Lola (Lei nº 13.642/2018), que autoriza a Polícia Federal a investigar crimes de ódio contra mulheres que foram praticados online. No entanto, a medida é considerada insuficiente. “A Lei Lola permite apenas a investigação, mas não assegura justiça. E o projeto de lei que propõe criminalizar a misoginia está parado no Congresso desde 2023”, critica Zilda.

Comunidades digitais alimentam a normalização da misoginia e do extremismo | Foto: Anna Perucelli

Responsabilização: além do agressor individual

A advogada Zilda também reforça que apesar de a responsabilização focar quase sempre no agressor direto, há toda uma estrutura que lucra com o ódio disseminado nas redes. “As plataformas digitais hospedam conteúdos que violam direitos fundamentais e ainda escapam de qualquer punição. É preciso responsabilizar também quem domina a tecnologia”. 

Entre 2018 e 2024, 137 canais brasileiros foram identificados como propagadores de discursos misóginos, com mais de 105 mil vídeos publicados e milhões de visualizações. Cerca de 80% desses canais monetizam os conteúdos, vendendo produtos, cursos ou apostas: um mercado do ódio altamente rentável.

 

O perfil das vítimas e a revitimização

As principais vítimas desse ecossistema de violência têm um perfil comum: mulheres com mais de 30 anos, mães, feministas, e as que opinam e ocupam espaços públicos. “São mulheres que incomodam”, resume Zilda. Muitas vezes, além de sofrerem os ataques, ainda são culpabilizadas pela sociedade e pelo Judiciário, como no caso da “pornrevenge”, que é a prática de divulgação de imagens íntimas sem consentimento.

“O direito ao esquecimento, por exemplo, não é controle de informação. É um direito mínimo de retirada de conteúdo que viola a privacidade. Mas a imprensa distorceu isso e o debate foi silenciado. A mulher continua sendo culpada até quando é vítima”, denuncia a advogada.

Apesar do medo, da perseguição e das falhas do sistema, Lola Aronovich não pensa em recuar. “Se eu cancelasse todas as palestras por causa das ameaças, não haveria mais palestra feminista no Brasil. O machismo é o medo dos homens das mulheres sem medo. Nós temos que ser essas mulheres”, afirma.

Especialistas reforçam que a batalha contra a misoginia exige mudanças profundas: fortalecer a legislação, responsabilizar plataformas digitais e educar a sociedade para enfrentar a violência de gênero em todas as esferas, sejam elas digitais e cotidianas. Hoje, a luta das mulheres não acontece apenas nas ruas. Ela está também nos comentários, nas denúncias, nos algoritmos e nas salas de audiência.

Ficha técnica

Produção: Anna Perucelli

Edição e publicação: Eloise da Silva, Fabrício Zvir e Fernanda Matos

Supervisão de produção: Hendryo Anderson André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

Skip to content