Em uma tentativa de justiça, cerca de 200 pessoas, entre vizinhos e amigos de Sirlene, se mobilizaram para garantir que o acusado não fosse solt. Foto: Amanda Stafin
Os dias que se seguiram após o assassinato de Sirlene Pires foram de inquietação em uma cidade acostumada a uma rotina tranquila. Era difícil de acreditar. Opções como a internet era algo distante na época. A notícia se espalhou de boca a boca, carregada de medo e indignação. Entre conversas de vizinhos e conhecidos, os burburinhos se misturavam com o medo e a indignação de um crime. A pergunta que pairava era a mesma: o criminoso fora encontrado? E, se fosse preso, ficaria atrás das grades por quanto tempo?
Era 30 de novembro de 1988, Ernesto (nome fictício) se apresentou na cadeia pública e foi preso. Acompanhado por seus advogados, o autor do crime contra Sirlene confessou a autoria do delito, narrando as circunstâncias que ocorreu e ainda noticiou e confessou outro delito, a denúncia do furto simulado, relatada no capítulo anterior.
Já havia passado mais de uma semana desde a morte da jovem. Era uma manhã de rotina para João (nome fictício), dono de um pequeno boteco no interior de Palmeira, que relatou acontecimentos no velório da vítima. Decidiu ir até a delegacia para pagar a licença de funcionamento do estabelecimento. Não esperava testemunhar um dos momentos mais tensos do caso. “Eu cheguei lá e vi um conhecido sentado em frente à delegacia”, lembra, com indignação ainda perceptível. “Assim que me viu, ele falou: ‘o bandido tá aqui dando depoimento, aquele que matou a filha do Gilson’” (nome fictício).
A informação logo se espalhou. João deixou a delegacia pouco depois e foi avisar outros conhecidos. “Nem lembro exatamente para quem falei, mas alguém ligou para o Nelson” (nome fictício). Nelson, conhecido na região, estava dando suporte à família de Sirlene durante as investigações. Quando soube da notícia, pegou seu caminhão e percorreu a localidade de Colônia Maciel, avisando vizinhos e amigos. Muitos, ao receberem a notícia, embarcaram imediatamente no veículo e seguiram com ele para o distrito policial. Em pouco tempo, a frente da delegacia estava lotada.
“Encheu de gente”, relata Bernadete, outra moradora. Eram cerca de 200 pessoas aglomeradas em frente à delegacia. Todo mundo queria ver, queria fazer alguma coisa. Segundo ela, a movimentação levou o delegado a solicitar reforço policial de Ponta Grossa, temendo uma invasão.
A mobilização foi rápida e marcada por um sentimento coletivo de indignação. Boatos de uma possível transferência do acusado aumentaram a tensão. Em determinado momento, os carros que tentavam sair do pátio da delegacia eram cercados por homens e mulheres para garantir que o suspeito não fosse retirado às escondidas. “O Luciano (nome fictício), que também estava acompanhando o caso, pulou na frente de um dos carros”, conta João. “Ele mandou abrir o porta-malas. Pensou que estavam tirando o assassino dali”, diz. Sob pressão da multidão, o motorista foi obrigado a descer e abrir o compartimento do veículo, em uma cena constrangedora, para provar que não havia ninguém escondido.
Quando o reforço policial chegou, o clima já era de revolta. Os portões foram trancados, soldados formaram um cordão de isolamento e a delegacia passou a ser vigiada. Do lado de fora, a multidão permanecia em alerta, pressionando os policiais. “O povo cercou o portão. Os policiais ficaram com medo de a gente invadir. Éramos muitos lá fora. A gente queria justiça”, lembra João.
De acordo com a Rede de Observatórios da Segurança, o linchamento não é tipificado como crime no Código Penal, o que dificulta a produção de estatísticas oficiais. Dependendo do desfecho, os episódios acabam sendo enquadrados como homicídio, tentativa de homicídio ou agressão. Entre 2023 e 2024, o número de casos saltou de 137 para 214, um aumento de 64% em apenas um ano, o equivalente a um linchamento a cada dois dias. A maioria das ocorrências está ligada a crimes que chocam a comunidade local, como roubos, violência sexual ou assassinatos. Em comum, todos refletem um desejo perigoso: fazer justiça com as próprias mãos.

O portão da delegacia se tornou uma barreira simbólica entre a justiça e a impunidade de um crime. Foto: Amanda Stafin
A prisão preventiva
No dia seguinte, para acalmar os ânimos, algumas pessoas foram autorizadas a entrar na delegacia e verificar se o homem acusado de matar Sirlene realmente continuava preso. Entre elas estavam João, comerciante da região; Ciro, cunhado da vítima; e Nelson (nomes fictícios). “Ninguém confiava. Achávamos que eles podiam soltar, dar um jeito de sumir com ele”, explicou o comerciante.
Eles passaram por três portões de ferro antes de chegar ao fundo do corredor. Na última cela, o acusado estava sentado, encostado na parede. “Ele nem olhou pra nós. Ficou lá, de cabeça baixa, como se estivéssemos invisíveis”. Talvez ele mesmo queria estar. “Mas vimos que ele estava preso mesmo. Aquilo, de certa forma, acalmou um pouco a gente”, relata João.
Este foi um dos momentos que mostra o quanto a revolta de parentes, amigos e conhecidos no cerco à delegacia e a pressão sobre a polícia já trazia um pedido por justiça. Não era apenas curiosidade: era um protesto silencioso, uma demonstração de que a comunidade não permitiria que a morte de Sirlene fosse tratada como mais um caso qualquer. A morte da jovem não era apenas um crime, era um acontecimento que abalava a comunidade em torno de um mesmo sentimento: justiça. Mas essa era apenas uma parte da história.
Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata da indignação da comunidade após o crime. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.
Ficha técnica
Produção: Amanda Stafin
Edição e publicação: Eduarda Gomes
Supervisão de produção: Hendryo André
Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado
