Perícia aponta indícios de execução em morte de jovens pela PM no Paraná

Familiares de mortos durante abordagem da ROTAM contestam versão policial e apontam irregularidades na investigação

Negros seguem sendo os principais alvos da violência policial no Brasil, segundo dados do novo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025. A maioria das vítimas da letalidade policial é composta por homens jovens: 99,2% das pessoas mortas em ações policiais no ano passado eram do sexo masculino, com maioria dos casos nas faixas etárias mais baixas. O índice de letalidade chega a 2,3 mortes a cada 100 mil adolescentes entre 12 e 17 anos. Entre os jovens de 18 a 24 anos, a cada 100 mil habitantes, 9,6 pessoas são mortas. A taxa cai para 7,3 na faixa de 25 a 29 anos e diminui conforme a idade avança.

Dos mais de 6 mil casos de mortes causadas por policiais em 2024, pouco mais de 4,7 mil foram identificados. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a maior parte dos estados não forneceu todos os dados, o que dificulta a transparência sobre as ações das corporações. Entre os registros com autoria confirmada, 91,4% foram atribuídos a policiais militares em serviço, representando 4.378 mortes. Outros 186 casos ocorreram fora do horário de trabalho, também envolvendo Polícia Militar.

Por que a polícia ainda mata? Essa pergunta ainda se faz presente em comunidades periféricas de todo o Brasil. Para compreender a violência policial que atinge, principalmente, a população negra, é necessário voltar ao período colonial. Durante a escravidão, os chamados capitães do mato tinham a função de perseguir, capturar e punir pessoas negras que tentavam fugir da escravidão. Atuavam armados, com autorização dos senhores e usavam da força para manter a ordem do sistema escravocrata. Mais de um século após a abolição, especialistas apontam que as práticas de controle e repressão não desapareceram apenas se adaptaram e os alvos seguem sendo os mesmos.

Caso Elaine e Matheus 

Na noite do dia 29 de junho de 2022, na PR-445, entre Irerê e Guaravera, no interior de Londrina, dois jovens foram mortos no asfalto. Elaine da Silva, de 28 anos, e Matheus Felipe Pereira, de 22 anos, estavam caídos de costas  com marcas de múltiplos disparos de arma de fogo na região frontal do corpo, peito, tórax e flancos. Não havia sinais de tiros nas costas, nas mãos ou nos braços, nem qualquer indício de reação, fuga ou resistência física. Foram alvejados de frente, de forma direta e letal. 

A posição dos corpos, aliada às lesões descritas no Laudo Pericial nº 63.373/2022, nega a hipótese de confronto em movimento ou troca de tiros. Não havia sinal de que Matheus ou Elaine dispararam qualquer arma. As armas apresentadas pelos policiais foram um revólver .38 e uma pistola .380 que estavam descarregadas, sem cartuchos iniciados, sem digitais comprovadas e sequer foram encontradas nas mãos ou próximas aos corpos.

No local, o único projétil coletado pela perícia foi de calibre .40, compatível com a arma usada pela Polícia Militar. Nenhum vestígio de disparos de calibre .38 ou .380, que seriam os supostos armamentos das vítimas. Não há também registro de ferimentos por disparos aos policiais.

O carro em que Matheus e Elaine estavam, um Ford Fiesta branco, não apresentava marcas de colisão, tiros laterais, nem sinais de perseguição. Já a viatura da ROTAM tinha apenas uma pequena perfuração no para-choque dianteiro. 

Matheus e Elaine, vítimas de uma ação policial que terminou em morte. A família contesta a versão da polícia e cobra justiça. Crédito: Marli Martins

Com base nesses elementos técnicos, a posição dos corpos, direção dos tiros, ausência de disparos por parte das vítimas e ausência de sinais de luta, a cena reconstituída se aproxima mais de uma execução do que de uma troca de tiros. Os alvos indicam que os dois foram interrompidos em movimento, rendidos ou surpreendidos e mortos com disparos no peito.

A mãe, Marli Martins, se emociona ao falar do filho. “Na época, Matheus estava em Santos, gravando uma música com um DJ. Tinha planos, projetos e o sonho de construir sua casa e criar os filhos ao seu lado. “Elaine acompanhava ele em todas as viagens, assessorava ele”, relembra Marli. “Saímos de madrugada, eu e meu marido, desesperados na estrada, rumo a Guaravera, para reconhecer o corpo. Uma coisa absurda. Meu filho parecia um animal que foi abatido”, lamenta.

A versão oficial é de que houve confronto, mas Marli contesta:eu não acredito nisso. Confronto? Ele foi alvejado de frente e sem nenhuma marca de defesa”. O caso está sob responsabilidade do delegado Mauro Martins. Marli comenta que o casofoi arquivado sem que ela fosse informada formalmente. “Eu preciso saber o que aconteceu. Os filhos dele e da Elaine têm esse direito.”

Marli conta que a tragédia destruiu toda a família. Em 2016, ela já havia perdido o filho mais velho. “Desde então, tento trabalhar para ocupar a cabeça. Criei o Matheus sozinha e não recebi apoio de ninguém. Nada. A filha dele tem problemas na visão, precisa de cirurgia e ainda lidamos com essa ausência brutal como se a vida dele não importasse. Foi como virar uma estatística e pronto”. Ela segue lutando por respostas. “Minhas netas ficaram órfãs de pai. Não é justo não descansar enquanto não souber a verdade”.

Para Mauro Martins, a justiça encaminhou à Procuradoria da Justiça o procedimento relacionado à morte de uma mulher em 29 de junho de 2022. O caso, que envolvia um suposto confronto com a polícia, foi arquivado sem que a principal testemunha fosse intimada a prestar depoimento. A decisão do arquivamento partiu do Ministério Público, mesmo com lacunas apontadas por familiares e advogados da vítima.

Segundo a polícia, as vítimas teriam fugido em alta velocidade e estariam armadas. No entanto, de acordo com Mauro Martins, esse padrão de justificativa é comum em episódios semelhantes. “A experiência mostra que, em situações como essa, dificilmente os jovens estão armados. Se você está fugindo, ainda em uma BR, é porque está com medo”, afirma.

Mauro comenta que, se os envolvidos fossem membros de organizações criminosas, estariam armados com fuzis, o que não era o caso. “Esse é um dos pontos que torna evidente que não houve confronto. Há indícios claros de execução no caso específico, a jovem foi morta por ter testemunhado outra execução cometida anteriormente”, comenta o advogado. Durante a abordagem, foram apreendidos apenas quatro reais e uma moeda de dez centavos com as vítimas. Para Mauro, isso reforça a suspeita de que não havia envolvimento com o crime organizado. “A Procuradoria tem desarquivado alguns casos recentemente. Muitos casos ainda seguem restritos à versão apresentada pela polícia. Isso levanta inúmeras dúvidas, não só neste caso, mas em vários outros semelhantes”.

  Segundo o documento pericial (Laudo nº 63.373/2022), os corpos foram encontrados no acostamento da rodovia. Elaine apresentava duas lesões pérfuro-contusas por disparos de arma de fogo na região do tórax, uma na face anterior e outra na face lateral direita da região mamária, além de uma terceira perfuração, com formato irregular, na parte central do tórax. O corpo dela também apresentava manchas hipostáticas, acúmulo de sangue após a morte e uma tatuagem na região do peito.

Matheus foi encontrado com quatro perfurações causadas por arma de fogo, todas na parte superior do corpo. Os tiros atingiram a lateral direita e esquerda do tórax. Uma das lesões indicava possível disparo a curta distância. Ele também apresentava manchas hipostáticas. O corpo estava deitado, com os braços estendidos e pernas flexionadas, sem indícios de que estivesse em posição de ataque ou fuga no momento do disparo.

Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. No próximo capítulo, será apresentado o caso de Willian Lucas, jovem negro morto pela polícia em Ponta Grossa, no Paraná. A reportagem investigará os detalhes além das versões apresentadas pelas autoridades e os questionamentos feitos pela família e por movimentos sociais. Será feita uma análise crítica sobre como a imprensa local tratou o caso, revelando padrões de silenciamento e a ausência de questionamento à versão oficial da polícia.

 

Ficha Técnica

Produção: Gabrieli Mendes

Edição e publicação: Gabriela Denkwiski e João Fogaça 

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar

 

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