Pessoas se declaram sem religião e buscam novas formas de vivenciar o sagrado

Número de cidadãos não religiosos deve passar de 1,2 bilhão até 2050

De acordo com projeção da Pew Research Center, há uma tendência de crescimento no número de pessoas sem afiliação religiosa, a estimativa é que o grupo ultrapasse 1,2 bilhão de pessoas até 2050. No entanto, segundo o mesmo estudo, esta parcela da população deve apresentar uma queda, em 2010 eles representavam 16% da população mundial, a estimativa é que ainda neste século o índice chegue a 13%. O dado indica que, embora o total de não religiosos continue crescendo, outras religiões podem ganhar fiéis ainda mais rápido.

A novidade é que a espiritualidade não está somente em templos ou rituais divinos, mas na conexão com a vida ao redor, como apreciar o entardecer, a energia presente em cada instante. É assim que Heloísa Glock, 28 anos, enxerga o sagrado. Sem seguir uma religião específica, ela encontra equilíbrio na natureza e na ayurveda, um sistema de medicina tradicional indiana que busca harmonia entre corpo, mente e espírito por meio da alimentação, ervas e práticas de bem-estar. A natureza é uma conexão, um portal. Mesmo dentro de um espaço fechado, estamos sempre ligados a algo natural. Eu vejo a natureza como uma ponte para Deus, na saúde, espiritualidade e mente”, relata.

Existem pessoas que têm buscado formas de espiritualidade que não dependem de uma religião organizada. Esta procura acontece fora dos templos e sem as amarras das doutrinas religiosas, mas ainda assim, de forma profunda e transformadora. A espiritualidade emerge como uma prática pessoal, em que cada indivíduo define sua própria conexão com o sagrado, como revela a pesquisa Espiritualidade sem-religião: cultivo da qualidade humana, produzida por José Vieira e Flávio Senra. 

Segundo o estudo, a espiritualidade sem uma religião específica não nega o sagrado, mas o ressignifica, e permite que ele se manifeste de maneira mais flexível e íntima. Com o crescimento do individualismo, as pessoas têm se afastado das práticas religiosas tradicionais. No entanto, isso não significa um abandono da espiritualidade. Pelo contrário, surge uma vivência moldada às experiências e necessidades de cada um. “Eu sempre explorei algumas religiões, como espiritismo, catolicismo, budismo e me aprofundei nos estudos do hinduísmo, o qual eu mais me identifico, embora não pertença a nenhuma religião. Isso me torna mais aberta e me ajuda a selecionar o que é bom para mim”, explica Glock. 

Em uma pesquisa realizada pela Global Religion em 2023, em 26 países, 89% dos brasileiros acreditam em Deus ou em um poder maior. O dado indica que 90% dos brasileiros o veem como apoio fundamental para superar crises. “A espiritualidade se refere às crenças e aos sentidos de vida que as pessoas encontram como motivação e impactam tanto na saúde mental, pela busca de sentido da existência, quanto a física, ao cuidarem de si mesmas por um bem maior”, explica a psicóloga Melissa Perinotti.

A professora Vanessa Kaniak estuda a espiritualidade há 15 anos, e é presidente do Instituto Kaluê em Ponta Grossa, uma organização sem fins lucrativos que tem o propósito de disponibilizar a medicina ayahuasca, que ajuda no autoconhecimento, cura emocional e espiritual, em uma forma de espiritualidade que equilibra o eu e o nós. “Ela não exclui o cuidado com o coletivo. Cuidar de si é essencial para estar bem e, assim, poder se doar aos outros, que é o coletivo”.

Elementos religiosos são usados por pessoas sem afiliação religiosa na busca espiritual. Foto: Emanuely Almeida 

Espiritualidade em transição 

Há alguns termos para se referir à prática como “espiritualidade sem religião, independente ou individualizada”. Para o teólogo e antropólogo Josué Flores, trata-se de um fenômeno crescente na sociedade, mas que ainda precisa de um termo claro que defina a experiência por completo. “Nossas crenças e práticas são dependentes de argumentos e influências externas. A ideia de que eu estou na minha casa e faço o meu próprio altar, gerando uma independência, talvez seja uma ideia muito pobre do que é esse fenômeno”, relata ele. A espiritualidade pode estar associada à religião, mas também  se manifesta de outras formas, como na relação das pessoas com o consumo, com a ciência ou até mesmo com práticas alternativas. “O que define a espiritualidade é onde você coloca o seu centro de atenção, aquilo que você considera significativo, que preencha a sua vida”, complementa.

Do sagrado coletivo ao altar exclusivo

No começo deste ano, a Igreja Batista da Lagoinha, uma das mais influentes do meio evangélico brasileiro, foi alvo de polêmica nas redes sociais ao inaugurar um espaço privilegiado para pessoas que desejam ter uma experiência em uma área denominada “VIP” em um de seus cultos, reservado para convidados especiais. “A tendência é de que essa experiência de individuação se torne cada vez mais frequente, é bem provável que as próprias religiões também passem por esse processo”, finaliza o antropólogo.  

Esta é a primeira reportagem de uma série que pertence às disciplinas de Produção e Edição de Textos Jornalísticos 3 e Núcleo de Redação Integrada. Os próximos capítulos irão explorar como fatores religiosos, sociais, culturais moldam a relação das pessoas com o sagrado na sociedade contemporânea.

Ficha Técnica

Produção: Emanuely Almeida

Edição e publicação: Fabrício Zvir, Giovana Guarneri e Juliane Goltz

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Furtado

 

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