Um caso não finalizado

Entre 1990 e 2025, o Brasil soma milhares de fugas e prescrições que transformam a impunidade em rotina judicial

Se ainda se recorda, no primeiro capítulo, esta repórter desdobrou uma história que aconteceu no início de 2025, o desaparecimento de Vitória. E a cada caso novo de feminicídio, o Brasil revive memórias antigas. É impossível não notar o quanto o tribunal de hoje dialoga com o de ontem. A violência contra mulheres, o silêncio dos acusados, as tentativas de desviar investigações, a dor das famílias. Em 1990, Sirlene foi julgada indiretamente, apesar da pena. Em 2025, Vitória corre o risco de viver o mesmo destino:, de ter sua história apagada pela lei.

A história de Vitória agora se desdobra nos tribunais. O nome que aparece no centro das investigações é o de Maicol dos Santos, preso desde 8 de março, poucos dias após o corpo da jovem ter sido encontrado em uma área de mata em Cajamar. Contra ele pesam acusações de homicídio qualificado, sequestro, ocultação de cadáver e feminicídio. O processo, volumoso, já ultrapassa duas mil páginas. 

Voltando ao caso de Sirlene, o agressor, aqui chamado de Ernesto, recebeu pena de quase vinte anos de prisão, mas que . Mas essa pena jamais foi cumprida por inteiro. De acordo com o processo, em 7 de abril de 1991, por volta das três da manhã, Ernesto “fugiu da Cadeia Pública Local, mediante arrombamento”. 

A notícia da fuga provocou nova revolta na comunidade. O comerciante João (nome fictício) se lembra da cena. Segundo ele,: a parede apresentava apenas um pequeno buraco na parte inferior. “Posso ter certeza de que ali não passava nem a cabeça de uma pessoa, é impossível ele ter escapado por ali”, relatou.

Imagem ilustrativa. Foto: Amanda Stafin 

O episódio gerou ainda mais desconfiança. Muitos se perguntavam se realmente houve um arrombamento ou se a fuga teria sido planejada, talvez até facilitada mediante algum tipo de pagamento. Não há provas, mas a dúvida permaneceu alimentando a sensação de injustiça. Os anos passaram, e na memória de alguns que lembravam do caso, comentavam de Ernesto estar por perto, alguns juravam que ele estava em outro estado. Nada, porém, era comprovado. A verdade é que ninguém sabia ao certo o paradeiro dele. 

Casos como o de Ernesto, embora pareçam isolados, não são exceção. O sistema prisional brasileiro ainda enfrenta um histórico de fugas e falhas na execução de penas. Segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), o Brasil registrou mais de 9 mil fugas apenas em 2023, uma média de quase uma por hora. Já dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) indicam que, em alguns períodos, o número ultrapassou 13 mil fugas em apenas seis meses. Mesmo com investimentos e vigilância reforçada, a reincidência mostra que o controle sobre a execução das penas ainda é precário.

No Paraná, embora as estatísticas de 1990 sejam escassas, relatórios posteriores apontam que, já na década seguinte, o estado chegou a registrar dezenas de fugas anuais, o que indica que situações como a de Ernesto se inserem em um padrão estrutural, não em uma exceção local.

Passando os vinte anos de pena, em 6 de maio de 2011, uma nova reviravolta trouxe à tona o caso: o Ministério Público do Paraná enviou à juíza responsável um documento declarando a extinção da pena de Ernesto. Com o prazo da condenação prescrito, a Justiça considerava a dívida dele com o Estado quitada, mesmo sem que tivesse cumprido a pena. Juridicamente o caso estava encerrado.

Segundo Freitas, da Mata e Mota (2016), em artigo publicado na Revista FACISA On-Line, a prescrição da pretensão executória em caso de fuga acaba funcionando como “um prêmio pelo desprezo ao sistema de justiça criminal”. Depois que alguém é condenado e começa a cumprir a pena, se ele foge, o artigo 112, inciso II, do Código Penal estabelece que o prazo de prescrição começa a contar a partir da interrupção da execução da pena. Ou seja, a fuga em vez de suspender o prazo, faz o relógio da prescrição começar a rodar. Se o condenado permanecer foragido pelo tempo suficiente previsto na lei (que varia conforme a pena aplicada), o Estado perde o direito de executar aquela punição. Na prática, isso significa que o réu pode “esperar o tempo passar” e, quando a prescrição se cumpre, a Justiça declara extinta a pena, mesmo que ela nunca tenha sido cumprida. 

Esse mecanismo existe porque a prescrição é vista como um direito básico, uma forma de evitar que o Estado tente punir alguém “para sempre”. O problema é que, quando aplicada em casos de fuga, ela  inverte essa lógica: em vez de penalizar a falha do sistema, beneficia quem quebrou a lei -incentivando a fuga e reforçando a sensação de impunidade.

Mesmo hoje, após mais de três décadas, o Brasil segue repetindo o mesmo roteiro. Segundo levantamento do jornal O Globo (2024), presídios de 18 estados brasileiros registraram ao menos 333 fugas no último ano, e parte dos governos estaduais sequer divulga dados completos sobre o tema, alguns, inclusive, chegaram a decretar sigilo sobre o número de fugas. O silêncio institucional sobre esses casos reforça a impunidade e mostra que a falha do sistema é contínua, atravessando décadas.

Esta repórter finaliza o penúltimo capítulo com a síntese até então. O caso de Sirlene após a fuga de Ernesto, um crime cercado de dúvidas, em que a única certeza foi extinta sem que ela tivesse sido cumprida. Para os papéis, o caso terminou. Para a memória, não terá mais fim.

Agora, diante do processo de Maicol e do julgamento da morte de Vitória, a comparação é inevitável. Ontem foi Sirlene, hoje é Vitória. Entre essas brechas da lei e as grades frágeis de um sistema que ainda permite fugas e prescrições, o risco é que a violência contra mulheres continue sendo lembrada apenas como estatística, quando deveria ser lembrada como memória e justiça.

Ficha técnica

Produção: Amanda Stafin 

Edição e publicação: Julia Almeida e João Fogaça

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

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