Um julgamento que expõe a culpa

 Dois anos após o crime, o tribunal expõe a memória de Sirlene | Foto: Amanda Stafin

No dia 27  de setembro de 1990, às 13h30, na Sala das Sessões do Tribunal do Júri, no edifício do fórum de Palmeira, aconteceu a sessão de julgamento. Atendendo ao pedido do advogado de defesa registrado no processo, cerca de dez policiais militares acompanharam Ernesto (nome fictício) até o local, convocados para garantir sua segurança no tribunal do júri. No banco dos réus, lá estava ele, 34 anos, acusado de matar Sirlene Pires, dois anos antes. O clima pesado da sala era onde, silenciosamente, se pedia por justiça.

Os jurados foram sorteados. 21 ao todo; destes, sete votaram. Ernesto permanecia ali, talvez reflexivo. O juiz Iolando Munhoz presidiu a sessão. Do outro lado, estava Gilson (nome fictício), o pai da vítima, lavrador simples. Nas páginas do processo, o registro escrito de sua fala: “encontrei minha filha caída, ainda respirando. Estava viva quando cheguei. Logo depois, não resistiu”, finaliza. Palavras que revelam os fatos, mas que naquele tribunal puderam expressar a dor da família e de todos aqueles que ouviam reflexivos a dureza da cena.

A promotora reforçou que o crime fora cometido por motivo fútil, de forma brutal, sem chance de contradição. A defesa, por sua vez, insistia na conversa de insanidade mental. Mas os laudos psiquiátricos já haviam descartado essa possibilidade: Ernesto era plenamente capaz de entender o que fazia.

Era de considerar um fato pertinente: a fuga do acusado dias após o crime. No fim de novembro de 1988, enquanto a morte de Sirlene ainda estava em processo investigativo e claro na lembrança da comunidade, Ernesto tentou despistar a polícia. Foi até a delegacia e inventou uma história, já contada no capítulo 3, de que haviam furtado uma espingarda, dinheiro e até torresmo de sua casa – um teatro mal encenado, que pretendia afastar as suspeitas sobre ele.

No júri, esse detalhe voltou à tona. Uma das perguntas dirigidas aos jurados era clara: no dia 24 de novembro de 1988, o réu comunicou um crime que sabia não ter ocorrido, com a intenção de desviar as investigações?” A resposta veio unânime: sim.

A cada quesito lido, a sentença se determinava com mais intensidade. “O réu matou Sirlene com golpes de pau?”. Sete votos sim. “Foi por motivo fútil?”. Sete votos sim. “A vítima pôde se defender?”. Sete votos não. Em um julgamento, quatro votos dos jurados já decidem. Para este não houve espaço de dúvida.

Enquanto o júri decidia seu destino, Ernesto parecia distante. Talvez lembrasse da correria pela estrada de terra, quando perseguiu Sirlene até derrubá-la. Ou talvez recordasse de quando planejou sua mentira para despistar quem investigava tudo aquilo. O homem que fingiu ser vítima de furto agora ouvia, impassível, o julgamento de sua culpa.

Para entender como o público acompanhou a decisão, a  repórter conversou com Joaquim (nome fictício), um dos presentes no tribunal. Sua resposta foi curta, mas reveladora: destacou apenas a unanimidade dos votos, sem acrescentar mais nada.

A fala de Joaquim, embora simples, diz muito sobre o clima daquele julgamento. A unanimidade dos votos, repetidas vezes, não deixava espaço para questionamentos ou nuances. É também o que afirma João (nome fictício), comerciante já citado no capítulo anterior. “Toda a fuga inventada, a mentira do furto e a brutalidade do crime talvez já o levariam à prisão”, relata. Isso refletia o peso da opinião coletiva sobre a vida de uma pessoa. Essa reação revela como, em determinados casos, o julgamento não se restringe ao tribunal: a sociedade observa, se envolve e, muitas vezes, já tem sua própria sentença formada antes mesmo do veredito final.

Nas palavras da escrivã Eliane Aparecida Calaça, já havia indícios claros de que o réu tinha responsabilidade pelo crime, o que depois ficou comprovado pela forma intencional e violenta com que agiu. No processo, ela registrou: “Seus antecedentes são bons; sua conduta social é desconhecida; sua personalidade, no entanto, mostra-se comprometida por um caráter considerado ruim. Os motivos do crime foram fúteis, como reconheceu o Conselho de Sentença”, escreve.

Quando o veredito foi anunciado, o juiz Munhoz leu a sentença: dezenove anos de reclusão em regime fechado, além de três meses de detenção. De acordo com o advogado criminalista André Luís Mezzadri, a pena para homicídio doloso simples varia de seis a vinte anos. Ernesto recebeu uma condenação quase no limite máximo.

Na avaliação do advogado, para a época, a pena pode ser considerada severa. Um dos fatores que pode ter pesado foi a repercussão do caso: a vítima era bastante conhecida, o que gerou forte comoção social. Em cidades pequenas, esse tipo de reação tende a influenciar mais. “Em lugares maiores, onde os jurados dificilmente conhecem pessoalmente o acusado ou a vítima, o número de absolvições costuma ser maior. Já em comunidades menores, a proximidade pesa na decisão”, explica Mezzadri.

Ele lembra ainda que, entre as décadas de 1980 e 1990, as condenações por homicídio no Paraná giravam, em média, dentro de um patamar mais baixo de anos de prisão, o que reforça a percepção de que a pena aplicada a Ernesto foi dura para os padrões da época.

A condenação foi recebida. De acordo com André, em setembro de 2024, o STF firmou entendimento de que réus condenados pelo Tribunal do Júri podem ser presos imediatamente após o julgamento, sem aguardar trânsito em julgado. Isso porque a condenação pelo Júri é considerada soberana. Na época do caso, 1990, não se sabe ao certo se Ernesto voltou para a cela logo em seguida.

Embora o criminoso tenha sido culpado pelo que fez, isso não significava reparação para a família. Mesmo com a sentença, a dor continuaria sendo uma luta diária e sem vitória. Nada traria Sirlene de volta. O choro passou a ser o único consolo. Gilson deixou o tribunal ainda carregando as marcas do crime. A decisão judicial não apagava a violência sofrida pela filha, mas ao menos colocava um nome e uma responsabilidade diante do que aconteceu. Ao menos foi o que se esperava da justiça.

A partir do próximo capítulo, mostraremos como essa mesma justiça se revelou frágil e, por vezes, injusta. Mesmo que a condenação tenha sido decretada dois anos após a morte de Sirlene, a fuga de um criminoso expõe o quanto a ideia de justiça, na prática, se distancia daquilo que a teoria promete.

Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo sobre a restrição dos celulares no ensino básico. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.

Ficha técnica

Produção: Amanda Stafin

Edição e publicação: Fabrício Zvir, Gabriela Denkwiski e Juliane Goltz

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão e publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

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