Velando o próprio crime: o disfarce do agressor no velório da vítima

Comportamentos dos agressores: frios, calculadores e próximos das vítimas são mais comuns do que se imagina, e prolongam a violência mesmo após a morte

Ele matou e depois apareceu no velório. Esse tipo de comportamento não é exceção entre agressores de mulheres no Brasil, é parte de um padrão. Segundo o psicanalista Luiz Pauluk, esse comportamento pode indicar psicopatia. “O agressor comparecer ao velório da própria vítima indica uma falsa empatia, uma tentativa de despistar as investigações e manipular as percepções de quem está ao redor”. Essa proximidade facilita não apenas o acesso, mas também a manipulação das investigações. Em muitos desses casos, o autor do crime é também quem notifica o desaparecimento, acompanha buscas e até conforta a família, tudo para manter uma aparência de inocência. Trata-se de um comportamento frio que prolonga a violência mesmo após a morte.

Alguns dos agressores choram, outros abraçam familiares, muitos simulam luto. Poucos são imediatamente suspeitos. Essa aparente normalidade, é parte do roteiro que se repete em casos de violência de gênero. E como um ato de aparências, lá estava ele: o agressor no velório de sua própria vítima.

Na noite em que a família de Sirlene velava o corpo da jovem assassinada, Ernesto (nome fictício) se fazia presente. Sentado entre familiares e vizinhos, manteve-se firme, como se fosse apenas mais um entre tantos que lamentavam a morte. Vestia uma camisa branca, abotoada até o pescoço. “Eu lembro que estava sentado no gramado, tinha muita gente ali. O pai dela, o Gilson (nome fictício), já tinha desconfiança. Achou que ele não teria coragem de aparecer, mas ele foi”, conta João (nome fictício), uma das testemunhas daquele momento.

Diante do túmulo de Sirlene, a memória da violência ainda é a dor de uma família.                                              Foto: Amanda Stafin

Um amigo da família testemunhou que Ernesto permaneceu cerca de quatro horas no velório. Estava contido, e não disse qualquer palavra à maioria dos presentes. “Parecia alguém abalado, mas a gente não sabe o que tem por trás do silêncio das pessoas”, comentou uma das vizinhas, mais tarde, quando o nome de Ernesto surgiu entre os suspeitos.

O caixão chegou por volta das duas da manhã. Gilson (nome fictício),  pai da vítima, foi quem encontrou o corpo da filha. Estranhando a demora, havia saído para procurá-la quando o relógio já avançava às seis da tarde. Era estranho ela demorar, costumava voltar sempre no ônibus da linha Estrela do Sul, por volta das 18 horas. Fazia isso sozinha, como de costume: descia na beira da BR-277 e caminhava os últimos metros pela estrada de terra até o sítio da família. Mas naquele 22 de novembro de 1988, ela não veio.

Rosa (nome fictício), irmã de Sirlene, passava o tempo no alto de um eucalipto para ver o ônibus chegar. Nesse dia, não viu o transporte chegar. Gilson, preocupado, saiu a pé pela estrada. O sol já se escondia quando, no meio do matagal, ele encontrou o corpo de Sirlene. Em relato, Gilson detalha o que seus olhos nunca mais esqueceram: a cabeça desfigurada, esmagada, envolta por muito sangue, a poucos metros da estrada de terra. Por um instante, o tempo parou. O som do vento entre as árvores cessou, e tudo ao redor pareceu emudecer diante daquela cena brutal. Seu mundo havia perdido o chão. Sua filha não voltaria mais para casa. A menina que ele sempre cuidou estava no chão de terra, levada por uma violência que ele ainda não compreendia.

Os gritos dele atravessaram o local. Ivone (nome fictício), esposa do acusado e vizinha próxima, escutou. Voltava da casa de uma amiga quando ouviu o desespero do pai da vítima. Correu até o local e encontrou Gilson. O corpo de Sirlene ainda estava ali. O pai então correu para o posto próximo da localidade, para usar o telefone, e ligou para a polícia. Não sabia dizer como tinha conseguido correr.

Eugênio e Helena (nomes fictícios), vizinhos e conhecidos de longa data da família, relataram, em depoimento, o comportamento de Ernesto: quieto, ausente. Sentava do lado de fora da casa, sem se aproximar do caixão. Quando alguém tocava no assunto, ele não respondia. Não dizia nada. Saiu junto com a família às 2h40 da madrugada, segundo relato da esposa.

 

A lápide de Sirlene guarda mais que um nome. É o símbolo de uma violência. Foto: Amanda Stafin

 

Outro morador da região também esteve presente. Viu Ernesto do lado de fora, de braços cruzados, alheio às orações, aos prantos, às tentativas de consolo. Naquela casa de luto, todo mundo notava o vazio, mas poucos falavam sobre ele.

Aos poucos, as histórias emergiram como cacos. Um vizinho contou que viu Ernesto dias antes nos fundos da casa da família. Outro lembrou que ele carregava uma espingarda quando visitava as meninas da lavoura. Gilson escutava em silêncio. Ainda tentava processar a imagem da filha morta, a lembrança daquele fim de tarde. Agora também guardava as lembranças dos pequenos sinais que talvez ninguém tivesse interpretado.

O velório seguiu em um ritual difícil. Dentro, o ambiente era pesado. As irmãs choravam, encostadas nas paredes. A família, amigos e conhecidos estavam reunidos. O aroma das flores tomava conta do ambiente. Lá fora, a escuridão era cortada apenas pelos faróis dos carros de conhecidos que chegavam em silêncio.

Na manhã seguinte, dia do enterro, o agressor acompanhou ao lado da esposa, como se fosse apenas mais um entre os amigos. Vizinhos e conhecidos relataram que ele chegou a levar flores, um gesto que, mais tarde, seria lembrado com incômodo. Romildo (nome fictício), ministro na época, recorda da cena que viu: Ernesto encostado no portão do cemitério, calado, vestindo uma camisa de manga longa apesar do calor daquele dia. “Lembro dele na celebração e depois no cemitério. Os rumores já circulavam, mas ninguém sabia de nada com certeza”, contou. A presença silenciosa do agressor, somada aos boatos, começava a mudar o tom do luto.

Após o sepultamento, Ernesto mudou-se com a família para a casa do cunhado Francisco, em outra localidade, a cerca de 12 quilômetros dali. Disse que era por medo: o assassino ainda era desconhecido e poderia estar por perto. Na verdade ele próprio temia ser descoberto.

Dois dias depois do enterro, em 24 de novembro, Ernesto registrou um boletim de ocorrência numa delegacia. Alegava que sua casa havia sido arrombada. Relatou que haviam furtado uma espingarda, 35 mil cruzados e uma quantidade de torresmo. A história parecia mal contada desde o início.

A investigação logo revelou o que o agressor tentava esconder: não havia furto algum. A própria cena foi montada, os vidros estilhaçados de sua casa foram quebrados pelo lado de dentro, um detalhe que, mais do que sugerir, quase denunciava a farsa. Ele mesmo havia escondido a espingarda sob o assoalho, nos fundos da casa, perto da fossa. O dinheiro já tinha sido gasto, e o torresmo, num detalhe quase cômico e trágico, foi jogado para o cachorro.  O objetivo do falso furto era claro: criar confusão, desviar a atenção das autoridades e dar um álibi para si mesmo, numa tentativa desesperada de evitar que a investigação o apontasse como culpado.

Poucos dias depois, Ernesto desapareceu. Deixou a casa do cunhado de madrugada. Por volta das três da madrugada do dia 26, Ernesto se levantou da cama e começou a se vestir. Ao perceber, a esposa acordou e o questionou sobre o que estava fazendo. Ele disse que iria embora. Ela perguntou para onde, por quê, o que estava acontecendo. Ele não respondeu, apenas entregou um bilhete, pegou uma mala e saiu com a moto. Segundo a esposa, no papel, havia instruções para que ela vendesse a casa, os animais e outros pertences, e cuidasse bem dos filhos. Nada mais. Mais tarde rasgou o bilhete e o jogou no fogo.

Ernesto escondeu a moto na casa de um tio, em Irati, e seguiu rumo a Guarapuava e depois a Pato Branco. Lá contratou um advogado e se apresentou à polícia. A partir dessa série de fatos, abre-se uma nova fase da história: o avanço das investigações, o clima de revolta entre os moradores, uma tentativa de linchamento e os detalhes da apresentação oficial do agressor às autoridades.

Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata do comportamento do assassino de Sirlene Pires após o crime. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.

Ficha técnica

Produção: Amanda Stafin

Edição e publicação: Eduarda Gomes, João Fogaça e Amanda Grzebielucka

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

 

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