A Trajetória Indígena nos Campos Gerais

A Trajetória Indígena nos Campos Gerais

Pouco se é difundido e estudado acerca dos povos indígenas que residiam na região dos Campos Gerais, seja por carregar consigo uma política de perseguição e apagamento dessas populações, ou por falta de estudos a fundo nesse assunto. A região carrega consigo uma extensa diversidade de ocupações de diferentes povos ao longo de centenas de anos, desde o período pré-colombiano à nossa atualidade, tendo suas ocorrências mais antigas datadas de 15 mil anos atrás, passando pelo encontro com os espanhóis e a colonização portuguesa, que resultou em uma mudança drástica na forma de viver desses povos.

Segundo a arqueóloga Claudia Inês Parellada, o primeiro contato que a região dos Campos Gerais teve com populações humanas se deu através da chegada de povos paleoíndios nômades, população essa que mais a frente recebem o nome Humaitá, povo esse que se desenvolveu desde o sul do estado de São Paulo até o Rio Grande do Sul. Após esse fato, a 9 mil anos atrás, devido a mudanças climáticas, temos a chegada do povo Umbu como caçadores e coletores. No livro “As representações geométricas e zoomorfas da tradição planalto; A Arte nos Campos Gerais”, de Cinara Souza Gomes, a historiadora descreve os achados arqueológicos desse povo, sendo grande parte, lâminas de machado, talhadores, picões, raspadores, plainas, facas, furadores, pontas e lascas. 

Em relação a população Humaitá, há discussões a respeito de seu surgimento e datação, pois, como dito antes, essa cultura pode ser ligada com os paleoíndios, porém, se desenvolveu de fato apenas a cerca de 6000 anos atrás, dividindo espaço com a tradição Umbu e mais a frente, expandindo-se para toda a região sul. Segundo o livro “O museu de Ciências Naturais: Geodiversidade e Biodiversidade”, organizado por Antônio Liccardo, a principal característica que diferencia essas duas tradições é a relação com os rios, onde na cultura Humaitá, a proximidade com riachos é muito mais forte, já que a matéria de seus objetos líticos provém de rochas próximas a eles, como o basalto e o arenito. Em contrapartida, os Umbu apresentam artefatos provenientes do quartzo, silexito, calcedônia e ágata.

As principais habitações desses povos são abrigos naturais na rocha, próximos à Escarpa Devoniana, que segundo o geógrafo Rafael Balestieri, eram muito mais requisitados pelos povos indígenas do que cavernas ou fendas, pois além de possuírem abrigos para as chuvas, também possuem grande luminosidade. Os Humaitá preferiam ocupações mais próximas aos rios, funcionando como acampamentos multifuncionais que se alastram para o céu aberto, não se limitando apenas aos abrigos naturais. Graças a essas ocupações é que encontramos as pinturas rupestres nas rochas e resquícios de objetos em seus entornos, que nos auxiliam a ter uma melhor compreensão de suas formas de vida.

A primeira menção dessas pinturas rupestres na região se deu após a publicação em jornal de 1956, da descoberta por Peter Lund, das cavernas de Cordisburgo e Sete Lagoas, em Minas Gerais. Um fazendeiro da cidade de Piraí do Sul, identificou semelhanças da imagem divulgada no jornal com desenhos vistos na Escarpa Devoniana, presentes em sua propriedade. Após essa descoberta, com o decorrer dos anos, os achados arqueológicos nesta região foram se tornando cada vez mais frequentes.

Uma das mais recentes descobertas acerca dessas pinturas é o fato de suas diversas origens, variando as datações, de acordo com o povo que as pintou. Ou seja, na mesma região, mas feito em tempos e por povos completamente diferentes, sendo eles os Humaitás, depois os Umbus, mais recentemente os Proto-Jês (a 4 mil anos atrás) – chamados também de Itararé – e os Guaranis (a 2 mil anos atrás). A principal diferença desses últimos dois povos com os seus antecessores é o domínio da cerâmica e da agricultura, como comprovam as escavações e suas pinturas, que representam plantas como a mandioca e também a proximidade deles com os rios, especialmente o rio Tibagi, que os auxiliaria a desenvolver a prática da cerâmica.

As representações da região dos Campos Gerais se enquadram na Tradição Planalto, a mesma presente em Minas Gerais e que se estende até o Rio Grande do Sul. Essas tradições ocorrem devido ao conteúdo das pinturas e suas características e estão espalhadas por todo o Brasil. A que se encontra nos Campos Gerais tem o nome de Tradição Planalto por se localizar no segundo planalto brasileiro e possuir figuras majoritariamente da cor vermelha – coloração advinda da hematita – e grande parte representando a fauna local, como cervídeos e aves, com pouquíssimas figuras humanas ou geométricas.

Vale ressaltar que o termo empregado aqui como “tradição” ou “cultura” não delimita necessariamente uma divisão de povos, mas sim uma organização de atividades e vivências das comunidades, pois as tradições Umbu e Humaitá são parte dos chamados indígenas Kaigang e Xokleng.

Falando agora exclusivamente de Ponta Grossa, temos 2 pontos de pinturas rupestres no local. O primeiro é o Abrigo Cambiju, onde não há nenhuma atividade ceramista, ou seja, são pinturas Humaitá ou Umbu, porém existe uma representação de um cervídeo fêmea desproporcional, com um cervo menor dentro, caracterizando uma forma de pedido ou magia para a fertilidade e crescimento da fauna. Já a segunda localidade, é o Morro do Castelo, que possui 4 ocupações em tempos diferentes, a primeira a 8200 anos atrás, a segunda a 7 mil anos, depois a 4500 anos e por fim, a ceramista mais recente Proto-Jê ou Guarani.

Com o início da exploração do território do Paraná, os espanhóis encontraram grandes dificuldades devido a uma resistência por parte dos indígenas, especialmente Guaranis. Por esse motivo, foram criadas as Quatorze Reduções Jesuíticas em todo o Sul do Brasil, com o intuito de apaziguar esses conflitos e catequizar os indígenas. Contudo, apesar de serem feitas por interesses espanhóis, foram atacadas e destruídas por bandeirantes portugueses vindos do estado de São Paulo, deixando com isso um território vazio na região dos Campos Gerais, já que os remanescentes dos Guaranis, em grande maioria, migraram para as regiões de Guaíra e outros pontos no Oeste, fazendo com que a terra ao Leste fosse ocupada gradativamente pelos Caingangues, estes sendo descendentes dos Proto-Jê.

Essas reduções jesuítas tinham o indígena homem como forma de trabalho braçal e a mulher no setor das artes, vivendo em aldeias planejadas arquitetonicamente para a catequização e para a comunidade. Apesar de possuírem propriedades de cultivo familiar, mesmo que seus depósitos fossem comunitários devido ao medo da imprevisibilidade indígena, a hierarquia tribal ainda foi mantida, pois os indígenas com maior poder ocuparam cargos altos no controle da redução, como o alcaide, para assuntos administrativos e o corregedor, para o judiciário.

A redução de San Miguel, nos Campos Gerais, foi uma das primeiras a ser atacada devido a sua proximidade ao rio Tibagi, rota usada pela bandeira de Raposo Tavares e Manuel Prêto para chegar a Guairá. Essas bandeiras tinham como principal objetivo o ataque e sequestro dos indígenas, devido ao seu alto lucro de venda. Em Ponta Grossa, ainda vemos um resquício das antigas reduções devido a preservação da Capela Santa Bárbara, que apesar de pertencer a jesuítas portugueses e ser construída cerca de 100 anos após a expedição de Raposo Tavares, essa capela preserva quase perfeitamente uma pequena parte da forma de vida dos jesuítas.

Saint-Hilaire, um francês participante de uma comitiva europeia de documentação da natureza da América no século XIX, tem sua passagem pelos Campos Gerais, onde além de descrever a flora, comenta acerca de um povo indígena vivente nas proximidades, chamado de Coroados, devido a uma pintura no topo de suas cabeças que se assemelhava a uma coroa.

Essa população foi descrita por Saint-Hilaire como sendo superiores em inteligência e beleza se comparados com outros povos da região, possuindo casas com paus cruzados ao estilo português e folhas de bambu ou palmeira no telhado, além de cultivarem feijão e milho em suas aldeias. Também estavam sempre em conflito com os portugueses, sendo sempre caçados com justificativas falsas de ataques a propriedades locais, além de diversas mulheres e crianças serem sequestradas para viverem junto aos brancos e se casarem com os paulistas pobres. Essa prática de sequestro permaneceu até o início do século XX na região. 

Ao mesmo tempo, houve no Paraná uma tentativa de retorno das missões jesuíticas, revoada de problemas e discussões com o que fazer com os indígenas, indo desde a catequese até guerras, branqueamento, exclusão em reservas ou inserção na civilização branca, que após um longo debate, foi proposto que as colônias tivessem o objetivo de inserir os indígenas na sociedade, principalmente através da fé católica. Nada disso foi colocado em prática na região dos Campos Gerais, que permaneceu sem nenhuma legislação com ou contra esses povos.

Muitos anos depois, na época da ditadura, vemos uma tentativa da FUNAI, descrita em um jornal dos Campos Gerais de 25 de outubro de 1974, de integrar o indígena a nossa sociedade, possivelmente sendo um dos primeiros passos para que em 1988 a constituição prever direitos básicos a estas populações, antes tendo seus anseios e pedidos completamente ignorados pela população e poder público.

Ao longo dos anos, os indígenas receberam um apagamento de suas existências no Brasil, sendo sempre colocados apenas no momento do contato com os colonizadores e depois simplesmente desaparecem do campo da história. Nos Campos Gerais isso não é diferente. Quase não se é falado dessas populações e muitas vezes até nem vistas como existentes ou pertencentes a região. Esse verbete, apesar de curto, tem o intuito de ser um ponto de partida para facilitar novas pesquisas mais aprofundadas, esperando que com o decorrer do tempo, possa-se ter uma melhor compreensão e divulgação dessa história que ainda permanece enevoada e invisível aos olhos de grande parcela da população.

 

Referências:

O Museu de Ciências Naturais: geodiversidade e biodiversidade/ organizado por Antonio Liccardo. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2022. 128p., il.

GOMES, Cinara Souza. As representações geométricas e antropométricas da tradição Planalto A Arte nos Campos Gerais, 22 ed. Curitiba: Secretaria do Estado da Cultura, 2011.

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MOTA, Lúcio, Tadeu. As colônias indígenas no Paraná provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000.

MOTA, Lúcio Tadeu. A construção do “vazio demográfico” e a retirada da presença indígena da história social do Paraná. 

NOVAK, Éder da Silva; MOTA, Lúcio Tadeu. A política indigenista e os territórios indígenas no Paraná (1900-1950). Dourados, MS: Fronteiras: Revista de História, 18. Volume. 32.ed. p 76-97. 2016.

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BALHANA, Altiva; MACHADO, Brasil; WESTPHALEN, Cecília. História do Paraná, 1. Volume, 1. ed. Curitiba: Grafipar, 1969.

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HELM, C.M.V. Kaingang, Guarani e Xetá na Historiografia Paraense. Curitiba: Design Estúdio Gráfico, 1997.

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TOMMASINO, Kimiye. A História dos Kaingang da bacia do Tibagi: Uma sociedade Jê meridional em movimento. Universidade de São Paulo, 1995.

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Autor: João Victor Maciel de Souza

Acadêmico do 2º ano de Licenciatura em História, UEPG

Ano: 2023

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