Absenteísmo do fazendeiro e administração do capataz: o caso da Fazenda Caxambu no relato de Saint-Hilaire
Em publicação referência para compreensão do sistema escravista brasileiro, o sociólogo Clóvis Moura registra em seu Dicionário da escravidão negra no Brasil (2004) a seguinte definição de feitor:
Na hierarquia rural, indivíduo que dirigia as fazendas, fiscalizando os serviços e, sobretudo, mantendo a disciplina da escravaria. No início, era quase sempre um português, mas com o tempo a profissão passou a ser exercida especialmente por mulatos. Tinha autorização do senhor de aplicar castigos nos faltosos, no que exagerava quase sempre, chegando muitos deles a requintes de selvageria (MOURA, 2004, p. 159).
Levando-se em consideração o pontuado pelo sociólogo – e sabendo-se que muitas das fazendas estabelecidas a partir do século XVIII na região dos Campos Gerais tiveram como proprietários membros da nobiliarquia paulista que realizavam negócios em outras paragens do país –, perguntamo-nos se a ausência dos senhores e a presença de feitores/capatazes também ocorria nesta parte do Brasil.
O naturalista Auguste de Saint-Hilaire nos fornece uma resposta. Ele passou nos Campos Gerais em 1820, presenciou e relatou a existência de feitores em fazendas da região. Uma das que ele destacou foi a Invernada do Caxambu, localizada algumas léguas de Jaguariaíba (atual município de Jaguariaíva).
Registrada como uma grande propriedade no escrito do botânico francês – detentora de inúmeras árvores frutíferas, de sistema de irrigação com “rústicos aquedutos muito em uso entre os mineiros” (SAINT-HILAIRE, 1995, p. 51), de pomares carregados e de animais bem tratados –, a Fazenda do Caxambu ou Invernada do Caxambu, encontrava-se sem a presença do seu proprietário quando Saint-Hilaire ali chegou. Para que pudesse hospedar-se num dos “chalés” do lugar e realizar seus estudos botânicos, o estudioso foi primeiramente recepcionado por “mulheres que cuidavam da casa” (IDEM, p. 53).
Os pedidos feitos pelo botânico quando de sua estadia na fazenda foram atendidos pelo capataz, dada a ausência do proprietário. Se Saint-Hilaire não utilizou o termo ‘feitor’, vale registrar que ambos os termos, capataz ou feitor, referiam-se aos encarregados do controle cotidiano da fazenda, o que incluía a vigilância das tarefas ali desenvolvidas e, em determinados casos, do castigo dos seus trabalhadores. Assim relatou Saint-Hilaire a respeito do encarregado da Fazenda Caxambu:
Passei cinco dias em Caxambu, retido pelas chuvas contínuas. Durante esse tempo fui tratado de maneira esplêndida; desde Sorocaba eu não havia encontrado em nenhum outro lugar um passadio tão bom. Era servido pelo capataz ou chefe das tropas, que na ausência do dono administrava a fazenda, e que no entanto não passava de um escravo (SAINT-HILAIRE, 1995, p.53-54).
O historiador Horacio Gutiérrez, em seu artigo Demografia das fazendas de gado no Paraná (1999), também destacou a questão do absenteísmo na região dos Campos Gerais. A ausência do proprietário se dava pelo fato de o senhor possuir mais de uma propriedade (ele podia residir em outra fazenda) ou por estar em viagem de negócios, fato comum na sociedade tropeira. Aliás, no relato de Saint-Hilaire foi registrado que em outras fazendas da região dos Campos Gerais por onde ele passou o proprietário também estava ausente.
REFERÊNCIAS
GUTIÉRREZ, Horacio. Demografia das fazendas de gado no Parané. In: III Congresso Brasileiro de História Econômica, 1999, Curitiba. Anais do III Congresso Brasileiro de História Econômica. Curitiba: ABPHE, 1999. p. 1-10.
MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil/Clóvis Moura; assessora de pesquisa Soraya Silva Moura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1995.
Autor: Ricardo Enguel Gonçalves
Acadêmico do 4º ano do curso de Licenciatura em História, UEPG
Ano: 2021