Cerveja na cidade de Ponta Grossa, o saber-fazer
Desde a década de 1870 Ponta Grossa começou a receber grandes levas de imigrantes europeus, principalmente poloneses, austríacos, alemães e italianos que se estabeleceram na cidade e em colônias rurais criadas para recebê-los ou nas já existentes (GONÇALVES; PINTO, 1983). A intenção governamental (desde o imperial até o municipal) para a fixação desses imigrantes era que estes se dedicassem às lidas da atividade agrícola, visto a constante falta de alimentos na região. No entanto, muitos abandonaram a agricultura fixando-se no espaço urbano e realizando atividades econômicas já praticadas em sua pátria-mãe. Gonçalves e Pinto (1983) analisaram a distribuição dos imigrantes em Ponta Grossa entre 1889 e 1920, por ocupações produtivas conforme a nacionalidade, e apontaram a ocorrência de trinta e quatro atividades econômicas praticadas por eles, além da agricultura. As historiadoras demonstraram tanto a diversidade étnica quanto a profissional daquele momento.
Dentre os estabelecimentos abertos por imigrantes europeus na cidade encontram-se as fábricas de cerveja. A primeira delas a ter o seu alvará de licença fornecido pela Prefeitura Municipal de Ponta Grossa foi a do imigrante italiano Francisco Gioppo, em abril de 1903 (PREFEITURA, 1904). Provavelmente este estabelecimento não foi o primeiro na cidade a produzir cerveja comercialmente, pois segundo Ferreira (1936) a primeira fábrica foi fundada em 1882 por Frederico Lorgues, no entanto, o empreendimento não teve uma vida longa. Ferreira também menciona a abertura na cidade de outras duas fábricas de cervejas e gasosas, uma administrada por Guilherme Metzenthim (Cervejaria Oceana) e outra por Carlos Schethler. Ainda para o século XIX encontram-se registros da existência da Fábrica Grossel, originalmente de Curitiba e que em 1894 abriu uma filial em Ponta Grossa (COMPANHIA, 1934).
Apesar da existência dessas fábricas mais antigas a Cervejaria Francisco Gioppo & Cia. foi a primeira a conseguir seu registro de alvará perante os órgãos municipais. Tal situação nos leva a ponderar que o ato de produzir cerveja em Ponta Grossa não teve início somente a partir da abertura dessas empresas e do recolhimento de seus impostos, mas iniciou no espaço doméstico, em lares de imigrantes europeus, para posteriormente se tornar uma atividade rentável voltada a um público maior. Por esse motivo é possível afirmar que o saber-fazer cerveja é um bem patrimonial que se constituiu em Ponta Grossa a partir da chegada de imigrantes europeus no final do século XIX, vindo a se tornar um elemento componente da identidade ponta-grossense, assim como integrante de seu desenvolvimento econômico e cultural.
De acordo com Sant’Anna “a permanência no tempo das expressões materiais dessas tradições não é o aspecto mais importante, e sim o conhecimento necessário para reproduzi-las” (2003, p. 49). Sendo assim, o conhecimento para se produzir cerveja pode ser reconhecido como um patrimônio cultural, isto é, o saber-fazer, que é um dos elementos estruturantes de todo patrimônio imaterial. Esse saber-fazer algo não se mantém congelado no tempo, pois todo patrimônio passa por modificações para conseguir se manter vivo (em uso, praticado). Pode-se perguntar: a cerveja feita em casa pelos imigrantes estabelecidos em Ponta Grossa desde o final do século XIX era a mesma que aquela feita nas diferentes fábricas desse mesmo período? Provavelmente não. Mas o saber-fazer dessa bebida em especial é que pode ser classificado como um bem patrimonial para muitos ponta-grossenses. Representava não apenas a confecção de uma bebida, mas a manutenção de elementos culturais trazidos de sua pátria-mãe, assim como relações necessárias para que esse ato se concretizasse. Nesse aspecto é interessante ressaltar que a questão econômica do fabricar cerveja é apenas um dos lados desse prisma cultural.
Pesquisando nos Livros de Registro de Alvarás e nos Livros de Registro de Imposto sobre Negócios e Profissões da Prefeitura de Ponta Grossa, no período entre 1899 a 1948 (esse intervalo de tempo corresponde aos livros da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa disponíveis para pesquisa no acervo da Casa da Memória Paraná), constatou-se uma considerável existência de fábricas de cerveja, algumas com uma vida comercial de mais de quinze anos e outras com vida efêmera. Entre estes estabelecimentos comerciais que produziram cerveja na cidade encontram-se as fábricas de Guilherme Metzenthin (Cervejaria Oceana, 1901-1917), Carlos Schetter (1901-1906), Francisco Gioppo & Cia. (1903), Oscar Baher (1907-1913), Paulo Canto (1908-1910), Bernardo Lampe (1910-1915), João Baptista Baglioli (1911-1915), Mathias & Cia. (1911), João Orlikawski (1914), Viúva Schetler (1914) e Jacob Ditzel (1927). Entre 1901 (primeiro livro de cobrança de imposto) e 1927 consta a existência de doze fabricantes de cerveja distintos, sendo quatro estabelecidos no Largo São João, posteriormente praça Barão de Guaraúna em diferentes momentos desse mesmo recorte temporal.
Um dos fabricantes de cerveja que se destacou na cidade foi Henrique Thielen, que fundou em 1906 a Fábrica Adriática de Cervejas a partir da filial da Cervejaria Grossel, fábrica que ele mesmo trouxe para Ponta Grossa em 1894. Ainda analisando os livros da Prefeitura Municipal constatou-se que a partir de 1927 somente a Adriática aparece como fábrica de cerveja atuando na cidade. Isso significa que se parou de fazer cerveja em casa mantendo-se apenas a atividade fabril com função econômica? Com certeza não.
A intenção desse verbete não é analisar as grandes cervejarias que existiram e existem em Ponta Grossa, mas pensar o saber-fazer cerveja trazido por imigrantes de diferentes nacionalidades que se estabeleceram na cidade. Esse saber-fazer tornou-se um elemento do desenvolvimento local, não apenas pela perspectiva econômica, mas também por uma perspectiva sociocultural. Por isso pode ser considerado como um patrimônio cultural local.
FONTES
COMPANHIA Cervejaria Adriática. Lembranças do seu 40º aniversário. Ponta Grossa, 1934. Acervo Casa da Memória Paraná.
PREFEITURA Municipal de Ponta Grossa. Registro de Alvarás de Licença. Livro nº 1, setembro de 1899 a janeiro de 1904. Acervo Casa da Memória Paraná.
PREFEITURA Municipal de Ponta Grossa. Registro de Alvarás de Licença. Livro nº 2, janeiro de 1904 a agosto de 1908. Acervo Casa da Memória Paraná.
PREFEITURA Municipal de Ponta Grossa. Registro de Alvarás de Licença e Outros. Livro nº 3, setembro de 1908 a outubro de 1911. Acervo Casa da Memória Paraná.
PREFEITURA Municipal de Ponta Grossa. Registro de Alvarás de Licença. Livro nº 4, agosto de 1911 a setembro de 1914. Acervo Casa da Memória Paraná.
PREFEITURA Municipal de Ponta Grossa. Livro de Registro de Impostosobre Negócios e Profissões, anos de 1901, 1905, 1906, 1908, 1909, 1910, 1913, 1914, 1915, 1917, 1927, 1929, 1935, 1940, 1942, 1945, 1946 e 1948. Acervo Casa da Memória Paraná.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Manoel Cyrillo. Miscelâneas da história de Ponta Grossa.Ponta Grossa: s. ed., 1936, 67 p.
GONÇALVES, Maria Aparecida C; PINTO, Elisabete A. Ponta Grossa – um século de vida (1823-1923).1 ed. Ponta Grossa: Kugler Artes Gráficas Ltda, 1983, 132 p.
SANT’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 1 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, 320 p.
Autora: Elizabeth Johansen
Professora Adjunta do Departamento de História UEPG
Ano: 2019
Revisão: 2020