A vida continua em outro corpo

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Quase cinco mil paranaenses aguardam na lista de espera por um transplante de órgão

O som do monitor cardíaco marca o tempo, a espera. Em um quarto silencioso de um hospital em Curitiba, uma mãe contava os minutos ao lado da filha. Era outubro de 2020, no auge da pandemia de Covid-19, quando Giovana de Andrade ouviu dos médicos que a filha, a pequena Gabi, de apenas 12 anos, precisaria de um novo coração. Bailarina, ginasta e apaixonada por vôlei, Gabi parecia carregar mais energia do que o corpo comportava. Até que uma virose, confundida no início com sintomas de depressão, mostrou o contrário. O quadro viral, relativamente simples e comum entre crianças, atingiu o coração e causou uma cardiopatia grave.
“Gabi foi uma verdadeira guerreira, lutando pela vida até o último minuto”, relembra Giovana. A mãe não demonstrava fraqueza para a filha, era a fortaleza da menina, mas tinha medo. “Nos momentos em que a fragilidade e a dor me alcançavam, eu dizia que iria ao banheiro, tomar água. Era ali que eu chorava, lavava o rosto e, em seguida, voltava para o leito com um sorriso no rosto, para que ela sempre sentisse força e esperança”, relata.
Gabi não resistiu à espera de um novo coração. Ela se foi enquanto aguardava em uma fila que, hoje, no Paraná, ainda carrega milhares de nomes.
De acordo com os dados mais recentes da Central Estadual de Transplantes, referentes a agosto de 2025, 4.847 pessoas estão cadastradas aguardando por um órgão ou tecido. São 2.342 pacientes à espera de um rim, 267 esperam por um fígado e 26 por um coração. Cada um desses números representa uma história.
Um transplante de órgão só pode ser realizado quando a equipe médica constata a morte cerebral, que é a ausência irreversível de atividade neurológica. A partir disso e após a autorização da família, os órgãos podem ser destinados aos pacientes que aguardam na fila de transplante. Duas equipes atuam nesse processo, a de captação e de implantação. Segundo a perfusionista Vera Lúcia Martins, a primeira equipe é formada por um médico cirurgião, um instrumentador, um técnico de enfermagem e um enfermeiro. Já no grupo da implantação, atuam um médico cirurgião, um anestesista, um instrumentador e um perfusionista.
O perfusionista é um profissional responsável por operar a máquina de circulação extracorpórea e demais acessórios. Dessa forma, durante um transplante de órgãos, é ele que mantêm as funções cardiorrespiratórias e o equilíbrio bioquímico do paciente. Atua exclusivamente em transplantes cardíacos e pulmonares, já que são procedimentos em que estes órgãos não conseguem se manter em funcionamento durante a cirurgia.
Para Vera Lúcia, o profissional da área da saúde aprende a lidar com as situações estressantes e trabalhar para que o resultado seja o melhor possível e os pacientes tenham uma recuperação plena. “Ao mesmo tempo em que você sente uma pressão em saber que a vida e a integridade física de uma pessoa estão sob sua responsabilidade, isso é um estímulo para que a gente coloque o que aprendeu em prática da melhor maneira possível”, explica. Ela afirma que, para os profissionais, é extremamente gratificante ver que um transplante foi bem sucedido e que aquela cirurgia significa um recomeço para o paciente. “Mesmo que envolva a morte de alguém, você está diretamente ligado com a sobrevida de outra pessoa. É uma sensação muito reconfortante”, conclui.
Em outra região do estado, há 11 anos, o bombeiro militar Osni Santos, na época com 36 anos, descobriu por acaso que precisaria de um transplante de rim. Ele estava feliz, em um momento bom da vida e fazia exames obrigatórios para uma especialização em primeiros socorros. E foi nesse momento que recebeu o diagnóstico: uma doença renal crônica. “No início, achei que os exames estavam errados. Afinal, eu sempre fui uma pessoa saudável, sem sintomas aparentes”, recorda. Mas não estavam. “Neguei a doença e, por um tempo, negligenciei os tratamentos, mas logo compreendi que se tratava de algo sério e que eu precisava iniciar o tratamento o quanto antes”, enfatiza.
No início, o tratamento era a hemodiálise, que o deixou frágil e cansado. Santos não estava sozinho, enquanto lutava contra a doença, a esposa, Patricia dos Santos, pensava em alternativas. O rim, de que ele tanto precisava, estava mais perto do que poderia imaginar. “A decisão foi tranquila, como se eu já soubesse que o rim certo era o meu”, relembra com serenidade. “Muitas pessoas se ofereceram para doar, mas algo dentro de mim dizia, desde o primeiro dia, que seria eu”, afirma. E algumas palavras se tornaram comuns nas conversas do casal: “Fique tranquilo, o seu novo rim está aqui do seu lado”, dizia Patricia. E estava mesmo.
O processo foi longo, repleto de exames e testes até a confirmação da compatibilidade. No dia do transplante, os dois foram levados juntos ao centro cirúrgico. Foram mais de dez horas e, mesmo com a complexidade e delicadeza da cirurgia, correu tudo bem. Mas, poucas horas depois veio o susto. “Já estávamos juntos novamente, quando meu marido começou a passar mal. A equipe médica foi chamada às pressas. Ele não estava bem. Acabou voltando para o centro cirúrgico e passou por uma nova cirurgia no mesmo dia. Depois, foi encaminhado para a UTI”, recorda Patrícia. “Por um momento, achei que ele tinha morrido ali, do meu lado. Lembro também de ter chorado muito e, em seguida, começado a rezar”, relembra.
Ele sobreviveu. Depois de três dias em um coma induzido, ao acordar, pensou na esposa e apesar de ainda ter uma longa recuperação pela frente, se sentiu grato. Quarenta dias depois, Santos voltou para casa, para perto da esposa e dos filhos, com um rim novo. O transplante, para eles, significou reafirmar o amor intenso que já sentiam um pelo outro. “Hoje entendo que nossos caminhos se cruzaram para além do amor e do desejo físico. Acredito que a espiritualidade também nos aproximou, como se o universo já soubesse que eu precisaria dela, não apenas como esposa, mas como doadora, como como força”, afirma.
Hoje, mais de uma década depois, o transplante continua a funcionar perfeitamente. O bombeiro retornou a rotina, trabalha, viaja e vive intensamente a cada dia. Patrícia, que teve uma recuperação rápida e sem intercorrências, garante que o órgão doado não faz falta. “A doação de um órgão é uma entrega de alma. E quem doa um órgão, doa esperança, presença e continuidade. Ter ele conosco é uma dádiva. Agradecemos diariamente”, conta Patrícia.
O Paraná é referência nacional em transplantes de órgãos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o estado possui o maior número de doações de órgãos no Brasil e o maior índice de aceitação familiar. Segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde, em   2025, foram 831 notificações de mortes cerebrais e 315 doações efetivas.
Os procedimentos relacionados à doação de órgãos são feitos integralmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com acompanhamento rigoroso e transparente. O diretor-geral da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, César Neves, destaca que o estado tem a menor taxa de recusa familiar do Brasil. O diretor credita o resultado às equipes que fazem abordagem com as famílias. “São profissionais da área da saúde que passam por capacitações para abordar as famílias de forma delicada, humanizada e principalmente mostrando que essa é uma ação de imensa solidariedade e que, às vezes, uma pessoa pode salvar diversas vidas”, declara.
Giovana de Andrade, mãe de Gabi, conhece o outro lado dessa realidade. O da espera que não termina em vida, mas se transforma em luta. Na missa de sétimo dia da filha, ela decidiu criar o projeto “Gabi Vive”, que nasceu de um gesto simbólico. Para a missa, Giovana pediu que, em vez de flores, as pessoas levassem alimentos para doação. “No meio da dor, nasceu uma corrente de amor e partilha, que se transformou no início do projeto, levando esperança e solidariedade a muitas pessoas”, diz. A partir daquele momento, a ausência da filha poderia se transformar em presença, não presença física, mas na memória. A história de Gabi foi o combustível para ajudar outras centenas de pessoas.
O projeto “Gabi Vive”, já promoveu campanhas solidárias de conscientização sobre a doação de órgãos e de sangue. Giovana planeja retomá-lo em 2026, com foco em informação e desmistificação. “A doação de órgãos ainda é cercada de muitos mitos e nosso propósito é justamente contribuir para mudar essa realidade, levando informação,    conscientização e esperança para tantas vidas que podem ser transformadas”, comenta Giovana. Ela utiliza as redes sociais como uma ferramenta para contar a história de Gabi e explicar detalhes sobre a doação de órgãos. Além disso, entre as campanhas solidárias, já foram realizadas diversas arrecadações, incluindo doações de doces, roupas de inverno e materiais de higiene. Giovana de Andrade transformou o luto em luta: “sempre com o intuito de ajudar quem mais precisava”, diz.
Entre o fim e o recomeço
Em uma sala iluminada pela manhã, Santos prepara o café enquanto o aroma da bebida se espalha pela casa. É um ritual simples, mas cheio de significado. A família se reúne. “Ele não faz por obrigação, faz porque entendeu o que realmente tem valor na vida”, garante Patrícia. E para ele, o que vale a pena é acordar todos os dias, ao lado da esposa, e ver o crescimento dos filhos. Para o casal, a vida está nas coisas mais simples; respirar o ar fresco da manhã, sentir o calor do sol ou tomar um café quentinho em um dia de chuva.
Giovana, por sua vez, guarda o sorriso de Gabi em molduras e memórias. “Quero que a história dela se torne uma semente de esperança, capaz de inspirar outras pessoas a compreenderem a importância desse gesto. O impacto que buscamos é ver o número de doadores crescer, menos famílias sofrendo na fila de espera e mais histórias de renascimento acontecendo”, finaliza.
Em cada doação de órgão existe uma ponta invisível: a da generosidade. No Paraná, ela pulsa todos os dias, silenciosa, mas constante. Em cada transplante realizado, em cada sim dito na hora mais difícil e em cada vida que começa onde outra se despede.

Reportagem: Ana Beatriz Paiva

Arte: Victor Schinato

Edição e Publicação: Radmila Baranoski e Joyce Clara

Supervisão de produção: Manoel Moabis e Aline Rios


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