Em vez de psicólogos, inteligência artificial
Segundo o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Brasil conta com cerca de 439 mil psicólogos, o equivalente a dois para cada mil habitantes. No SUS, no entanto, a proporção é de apenas 0,18 por mil. Quase 400 municípios sequer têm registro de psicólogos no sistema público. Na prática, somente 5% da população realiza acompanhamento psicológico regular. Enquanto isso, um em cada seis brasileiros utiliza medicamentos para tratar ansiedade e depressão, muitas vezes prescritos por clínicos gerais.
O atendimento público, embora gratuito, nem sempre é acessível. Longas filas de espera, dificuldade de encaminhamentos e esgotamento das equipes afastam parte da população. Fora da rede pública, os preços variam entre R$ 150 e R$ 500 por sessão, valores considerados inviáveis por muitas famílias. Diante disso, ferramentas de IA acabam preenchendo um vácuo. “As pessoas buscam algo que as escute quando o sistema não dá conta”, resume Heloísa.
Em busca de atendimento para seus problemas psicológicos, Maria* encontrou na inteligência artificial um espaço de escuta que, até então, não conseguia acessar. “Era madrugada, eu estava ansiosa e sentia que ia explodir se não falasse com alguém”, conta. Sem dinheiro para sessões com um profissional e na fila de espera do Ambulatório de Saúde Mental do município, ela abriu o aplicativo no telefone celular e digitou. “ChatGPT, posso conversar com você? Estou me sentindo ansiosa.” Em segundos, recebeu uma resposta acolhedora. “Não tenho orgulho de usar [o ChatGPT] para isso, mas foi o que me ajudou naquela noite,” relata.
Casos como o de Maria* não são isolados. Segundo dados da Talk Inc., 12 milhões de brasileiros utilizam inteligências artificiais para finalidades relacionadas à saúde mental, sendo a metade deles usuários do ChatGPT. O fenômeno se insere num contexto de sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS) e custo altos de atendimentos psicológicos privados, além da rapidez com que essas Inteligências Artificiais (IA’s) entregam respostas, o que, para muitos, se torna um fator decisivo.
Para a psicóloga Heloísa de Lima, o uso dessas ferramentas como espaço de desabafo não é, em si, um problema, mas exige cautela. “É uma ferramenta limitada a conselhos superficiais, que muitas vezes apenas corroboram o discurso de quem escreve, sem mostrar outros pontos de vista ou apontar possíveis comportamentos prejudiciais”, explica. O alerta principal, segundo ela, é quando a IA passa a substituir completamente a escuta profissional.
Em nota oficial enviada à reportagem, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) reforça que as ferramentas de IA “não substituem o juízo técnico ou ético da psicóloga e do psicólogo”, ainda que possam ser aliadas em tarefas administrativas ou de apoio. A instituição alerta para o uso indiscriminado de ‘chatbots’ terapêuticos e destaca os riscos de “fragilização da confidencialidade, substituição de vínculos humanos por interações e opacidade de processos decisórios mediados por IA”.
O CFP participa atualmente de um grupo de trabalho da Frente Parlamentar Mista da Saúde, que discute uma proposta de regulamentação para o uso de IA na saúde.
Para Heloísa, há dois fatores principais que explicam a popularidade dessas ferramentas. O primeiro é o imediatismo. “ O que é mais fácil: esperar o momento da terapia para falar sobre seus sentimentos, ou mandar uma mensagem ao Chat e ter uma resposta em menos de um minuto?”, questiona.
O segundo é o fator financeiro. “As IA’s são gratuitas, o que pesa muito no orçamento. O que muitas pessoas não sabem é que existem formas de terapia feitas por um valor mais acessível e podendo serem até gratuitas, sendo o que chamamos de atendimento social. Outra opção são as clínicas-escolas das faculdades que tem Psicologia”, ressalta.
A distribuição desigual de psicólogos pelo território brasileiro também impacta o acesso. Em estados como o Paraná, são pouco mais de 33 mil profissionais para uma população de 11 milhões de pessoas, segundo dados do próprio CFP. Em cidades pequenas, encontrar um psicólogo disponível pode ser inviável. Para esses casos, a psicoterapia online tem sido uma aliada. “Atendo virtualmente desde 2015, e sempre vi a mesma eficácia da terapia presencial. A psicoterapia online abre muitas portas para que o acesso aos psicólogos seja facilitado”, afirma Heloísa.
Ainda que não recomende a substituição da psicoterapia por IA, a psicóloga reconhece que, em situações pontuais, a ferramenta pode ajudar. “As IA’s podem ser um veículo interessante para momentos de crise e necessidade de acolhimento, como quando uma pessoa está precisando muito desabafar, e não tem uma rede de apoio a quem recorrer. Porém, é algo que deve ser usado com bastante cuidado”, explica. Em outros casos, ela também pode ser útil na organização da rotina, um dos fatores que afetam a saúde mental.
O problema, segundo Heloísa, é quando se cria dependência. “Estamos terceirizando habilidades como raciocínio lógico e matemático, criação de textos, análise crítica, criatividade e o próprio autocontrole emocional, e colocando toda a responsabilidade destas na IA”, adverte.
* Nome fictício para preservar a
identidade da fonte.
Reportagem: Mariana Real
Edição e Publicação: Lucas Veloso e Joyce Clara
Supervisão de produção: Manoel Moabis e Aline Rios

