A ameaça silenciosa da automedicação

A ameaça silenciosa da automedicação

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No país são registradas cerca de 20 mil mortes anuais pela ingestão de remédios sem orientação, afirma Abifarma

Quem nunca sentiu uma dorzinha de cabeça e tomou um relaxante muscular? Ou sentiu o nariz meio trancado e já partiu para tomar um remedinho para gripe? A automedicação é uma prática comum no Brasil, muitas vezes encarada como uma solução rápida para sintomas conhecidos. Mas o que muitas pessoas nem imaginam é que o simples ato de ingerir um remédio por conta própria, ou tomar o “chazinho milagroso”, pode vir a causar sérias consequências. 

Em função da ampla disponibilidade de medicamentos e das informações superficiais (e muitas vezes falsas) divulgadas na internet, a automedicação está cada vez mais frequente em nossa cultura. A socióloga Simone Pinheiro destaca que a auto medicação é uma prática antiga, desencadeada principalmente por questões econômicas. Segundo ela, grande parte da população não tinha condições financeiras para realizar uma consulta médica. Isso ajudou essa cultura da automedicação a ganhar força e permanecer em alta até os dias atuais, especialmente entre as classes econômicas mais baixas. “Hoje nós temos mais acesso a vários medicamentos, graças às Farmácias Populares, por exemplo”, aponta. 

Com a questão financeira, a automedicação acabou se tornando popular, inclusive com o uso de remédios caseiros. O costume de fazer chás, compressas e outros métodos como alternativa para tratar diversas doenças é uma tradição milenar que perpassa gerações. “Isso vem lá do Brasil Colônia, onde havia falta de farmácias. Depois, o acesso aos medicamentos e ao conhecimento acerca deles permaneceu difícil para uma parcela da população, ainda mais com as farmácias elitizadas”, explica. 

A automedicação desenfreada 

Algumas pessoas costumam montar kits de remédios para “emergências”. Foto: Eduarda Guimarães.

A prática de tomar remédios sem orientação pode causar sérios danos à saúde. Entre as possíveis consequências estão reações alérgicas, intoxicações, agravamento da doença, efeitos colaterais graves, desenvolvimento de resistência a medicamentos e dependência. O abuso de antibióticos, em particular, levanta preocupações sérias, pois contribui para o aumento da resistência bacteriana. Um estudo realizado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) aponta que, entre 2020 e 2022, houve um aumento de 65% na detecção de enterobactérias, que parasitam o intestino, e alta de aproximadamente 61% de Pseudomonas aeruginosa, responsável por grande parte das infecções diagnosticadas nos hospitalares.

Victor Monteiro, estudante de computação, admite fazer uso incorreto de antibióticos ao não respeitar os horários em que devem ser tomados. “Sei que isso não faz bem, mas esqueço de colocar alarmes. Então, nos primeiros dias eu tomo o medicamento de maneira correta, e depois começo a atrasar os horários”, relata. Quando se trata de medicamentos mais leves, Monteiro sempre ingere sem nenhum tipo de prescrição, pois declara já ter conhecimento de quais medicamentos são “bons” para determinados sintomas. Para ele, o ideal é ignorar o problema até que passe sozinho, mas quando os sintomas persistem, a automedicação é frequente. Victor afirma que se automedica todo mês: “Quando não tomo remédio, acabo optando por bolsas de ervas quentes para dor de cabeça e outras dores, por exemplo”, conclui.

O vício 

A automedicação é uma prática comum em muitos lares de Ponta Grossa. É o caso de André Nobre, formado em software, que costuma fazer uso de Dorflex e Neosaldina quando sente dores musculares e sintomas iniciais de resfriado. Em 2016, ele desenvolveu dependência no medicamento Neosoro, o que trouxe diversos prejuízos para a sua saúde. Devido a crises constantes de rinite, ele só conseguia respirar normalmente com a aplicação do medicamento. 

André conta que o uso contínuo do Neosoro atrofiou o músculo do nariz e acabou precisando de cirurgia para se recuperar. Além disso, o hábito afetou seu sono, já que a cada 4 horas ele acordava com a sensação de não conseguir respirar, sentindo a necessidade de usar o medicamento. “Hoje em dia, eu consegui largar esse vício que tinha, foi difícil”, relata. 

Para algumas pessoas, o vício em remédios é ainda mais evidente. Andreia Cardoso, agricultura em Ipiranga, recebe delivery de remédios em casa há anos. Ao menos uma vez por mês, ela faz o pedido em uma farmácia que tem ofertas de medicamentos. Nas compras, os analgésicos, antiácidos e antialérgicos sempre estão presentes. “Eu aproveito pra comprar esses remédios mais leves, de dia a dia, porque costumam ter mais de 80% de desconto. Antibióticos e remédios para dormir eu não compro”, explica.

O Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico de 2022 aponta que a venda medicamentos de tarja preta/vermelha, que são mais nocivos e viciantes, representa faturamento de 73% para a indústria farmacêutica. A psicóloga Fernanda Moreira comenta sobre dois fatores muito comuns que acabam facilitando a dependência em remédios fortes: “O diagnóstico errado e a medicação inadequada podem causar vários prejuízos, efeitos colaterais adversos e até mesmo o agravamento dos sintomas e da condição em que o paciente se encontra”. 

Fernanda conta que é muito comum casos de bipolaridade serem confundidos com depressão. Ambas são tratadas com remédios controlados e que causam dependência, além de riscos à saúde devido à interação medicamentosa. Por isso, é importante refletir: se mesmo com prescrição de um profissional o uso de um medicamento pode ser perigoso, que dirá quando a utilização é feita por conta própria, sem auxílio. 

Bolsa de remédios para “emergências”. Foto: Eduarda Guimarães.

A cultura dos remédios caseiros 

Pela dificuldade de realizar consulta médica na cidade onde mora, Silvia Martins, detetizadora em Ipiranga, costumava optar pela automedicação. Agora que está grávida, ela teve que abandonar esse hábito e recorrer a remédios caseiros. Com o cuidado redobrado devido à gestação, até mesmo alguns chás estão fora de cogitação. “Quando tenho dor de cabeça, faço uma compressa de sal grosso torrado para colocar na testa. Sempre funciona. Agora que estou com enjoos, sigo o costume dos antigos de tomar caldo de feijão”, conta.

Quanto aos chás caseiros, é de conhecimento popular que o de boldo é bom para o estômago, o de romã para a garganta, entre outras opções. Para Stefane Gonçalves, formada em publicidade, os chás são um ótimo “quebra-galho” quando se trata dos sintomas de ansiedade. “Minha mãe, que aprendeu com minha avó, me ensinou a tomar chá de alecrim sempre que me sinto ansiosa”, relata. Como Stefane faz terapia há 4 anos, a automedicação se tornou menos frequente, pois ela conhece os riscos à saúde. “Antes eu tomava muito Seakalm [fitoterápico utilizado para tratar ansiedade leve e melhorar o sono], mas agora costumo tomar chá de saquinho, para melhorar”. 

Os remédios que utilizam ervas e demais componentes naturais são conhecidos como fitoterápicos. Eles passam por testes de qualidade e são registrados no órgão federal de vigilância sanitária (ANVISA) antes de serem comercializados. A fitoterapeuta Beatriz Padilha afirma que os chás, quando bem feitos, podem trazer benefícios à saúde. Mas grande parte da população que faz uso de meios alternativos como forma de remédio, não sabe que há partes certas e plantas adequadas para utilizar. “É um erro pensar que, por serem naturais, as plantas medicinais não causam riscos à saúde. Além do princípio ativo terapêutico, a planta pode conter substâncias tóxicas e alergênicas, ser contaminada por agrotóxicos, metais pesados e outros”, explica. 

Beatriz destaca os perigos de alguns chás para gestantes, que podem causar má formação no feto, e para pessoas com hipertensão, que devem evitar plantas com potencial para aumentar a pressão sanguínea, como o alecrim. “Uma planta que ficou muito conhecida, principalmente nas redes sociais, foi a Berberina, que promete a perda de peso. Porém, não há evidências científicas de sua eficácia. Ela pode causar dor abdominal, diarreia, vômitos e dor de cabeça”, alerta. 

A (falta de) responsabilidade da indústria

Segundo pesquisa feita pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF), a porcentagem da população brasileira que se automedicava era 77%; em 2022 esse número já tinha chegado a 89%. Esses dados são reforçados pelo Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ) que fez um levantamento, em 2022, com uma coleta iniciada em 2014. Desde o início da coleta, 10 anos atrás, até 2022, o ICTQ constatou que 76% da população afirmou se automedicar. Em 2020 essa porcentagem já tinha aumentado para 81%. Além disso, os dados do CFF afirmam que, desses brasileiros que se automedicam, 47% faz pelo menos uma vez por mês e 25% faz uso dos remédios todo dia ou, ao menos, toda semana.

O Instituto revela, ainda, que os medicamentos que lideram o ranking de mais utilizados são os antigripais (47%) e os relaxantes musculares (35%). Em 6% da população a automedicação para sintomas como insônia e estresse é frequente. Para a socióloga Simone Pinheiro a indústria farmacêutica é diretamente responsável por essa cultura da automedicação. “Qualquer pessoa pode chegar lá, falar os sintomas e comprar um medicamento indicado pelo próprio farmacêutico. Sem nenhum tipo de consulta com um médico especialista”. Essa venda desenfreada acaba incentivando a automedicação uma vez que cria a falsa ideia de ser inofensiva, alimentando o mercado farmacêutico.

Farmacêutica Alicia Krüger fala sobre o assunto

Reportagem e Fotos: Eduarda Guimarães

Edição e publicação: João Pizani e Juliana Lacerda

Supervisão de produção: Ivan Bomfim e Gabriela Almeida


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