
Além do arco-íris não há lugar para você: o sistema para mulheres trans
Apenas uma unidade prisional do Paraná possui uma ala voltada para a comunidade LGBTI+
| Por Gabriel Aparecido e Victor Schinato
Ponta Grossa não possui uma ala exclusiva para pessoas LGBTI+. o Paraná conta com apenas duas alas exclusivas que somam oito vagas, na cidade de Pato Branco. Há também 11 celas, que são espaços menores que as alas, destinadas a essa população, com 59 vagas. Os dados são do relatório do 2o Semestre de 2024 do Sistema Nacional de Informações Penais. Atualmente o Paraná apresenta 119 unidades prisionais.
O chefe regional do Escritório Social da polícia penal, Jean Carlos Fogaça, explica que as unidades prisionais do município não são preparadas para cuidar de pessoas LGBTI+, por isso elas são transferidas para unidades de outros municípios, como é o caso da Cadeia Pública de Pato Branco.
Quando mulheres trans e travestis são presas, há um tratamento diferente em relação às outras pessoas privadas de liberdade (PPLs). “Ela tem que ficar separada dos demais e em um período curto de tempo tem que ser transferida para essa unidade específica [Cadeia Pública de Pato Branco]”, afirma Fogaça. Ао ser questionado, entretanto, ele não comenta sobre o tempo destinado para essa transferência ou, até mesmo, se as mulheres trans devem permanecer com homens ou outras mulheres enquanto esperam por esse processo.
Thaís Boamorte, presidente do Conselho Municipal LGBTI+, relembra que é comum observar casos de mulheres trans com seus direitos desrespeitados. “Há pouco tempo vimos o caso de uma mulher que teve seu cabelo raspado para se encaixar numa ala masculina” relata. Ela complementa que a criação de alas específicas é somente algo inicial para que detentos LGBTI+ tenham seus direitos respeitados, como o uso do nome social e a garantia de acesso a tratamento de saúde física e psicológica. A representante explica que para isso, os profissionais penais devem ter um preparo para o tratamento da população LGBTI+, além de uma escuta da população prisional que se identifica como parte da comunidade.
“Eu fiquei 10 anos fechada”: A resistência de Fernanda Riquelme no cárcere dos anos 80
Fernanda Riquelme, travesti que sobreviveu ao cárcere, contou sua experiência para a Nuntiare. Fernanda nasceu em Ponta Grossa, em 1962, mas naquela época não atendia por esse nome. Enquanto travesti, foi reservada a possibilidade de construir-se para além daquilo que lhe foi determinado no nascimento. Sempre foi feminina, comportou-se e vestiu-se assim, como ditava sua alma, de acordo com o que ela diz.
No meio da década de 80, viu-se em meio ao sistema carcerário, antes mesmo da existência da Penitenciária Estadual de Ponta Grossa. As circunstâncias a levaram até a ala masculina da antiga cadeia pública, onde hoje existe o prédio dos bombeiros. “Era um corredor com cancelas, onde as pessoas pagavam por seus erros”, pontua Fernanda.
Em 1986, a Cadeia Pública Hildebrando de Souza foi aberta, e então ela foi transferida para o novo prédio. Após dois ou três anos, sem conseguir afirmar com clareza devido ao desbotamento das memórias e dias repetitivos no cárcere, Fernanda foi levada até o Complexo Penitenciário de Piraquara. Um presídio de segurança máxima. Como ela relata, eram 11 portões até a saída, e a cada porta aberta, menos você é vista como uma pessoa.
Um dos traços de Fernanda é o orgulho que ela tem de sua aparência e autocuidado. Na época, mesmo na prisão, essa característica se manteve presente. No entanto, um sistema falho conseguiu também corromper esse singelo ato de autoafirmação. Apesar da virada sombria, numa história já com muitas curvas retorcidas, Fernanda dificilmente se abala com as lembranças: “O povo estava se matando para me conhecer, ficar comigo. Quem tinha lucro com tudo isso? Os agentes penitenciários”, relata.
Dentre as várias violências que Fernanda relata, o “castigo” é um elemento bem presente e marcante. Eram 60 dias numa ala fechada, onde ela era agredida indefinidamente. Mesmo recém-ingressada na prisão, ela foi levada até a delegacia, e teve seu cabelo raspado. Esse fato se repetiu várias vezes, toda vez que seu cabelo voltava a crescer.
Devido a valorização de sua aparência e corpo, Fernanda relata que tinha informações de diferentes eventos que viriam a acontecer, fossem eles rebeliões, espancamentos ou até mesmo assassinatos. “Era horrível, mas foi a maneira que eu encontrei de sobreviver”, complementa. Ela relata que obtinha informações com OS agentes penitenciários em troca de “benefícios”, e então usava isso a seu favor. “Você acha mesmo que eu ia escolher ser discriminada a vida inteira? Sentir o todo o sofrimento e a violência? Ninguém escolhe”, endereça Fernanda sobre os agentes penitenciários que a agrediram por ser trans.
Após 10 anos em regime fechado, Fernanda foi transferida ao regime semiaberto na Colônia Penal Agrícola, também em Piraquara. Na colônia, também direcionada apenas a homens, a violência de gênero novamente foi um agravante na sua experiência. Com receio de que a presença de uma figura feminina causasse algum tipo de distúrbio na ordem da colônia, Fernanda passou os primeiros meses isolada das outras pessoas privadas de liberdade. Lá, trabalhou, comeu e conviveu em áreas direcionadas apenas a administração e funcionários. Também pôde dar continuidade à prática em marcenaria e artesanato, que já havia iniciado no regime fechado.
O sofrimento deixa profundos cortes, que sem o devido cuidado nunca se fecham. No entanto, Fernanda cresceu ao redor de seus erros e dores, e construiu para si uma vida da qual se orgulha, num processo semelhante ao da construção de sua própria identidade.
A vida e violência prisional é só um dos diferentes episódios que marcam a vida de alguém que participou de diferentes movimentos sociais, atuou em peças teatrais e até mesmo foi capacitada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Em Ponta Grossa, entre diversas atividades, integra a diretoria da ONG Renascer, que atua no auxílio social, médico e psicológico da população trans da cidade.
Direitos LGBTI+ no cárcere
Foi aprovado o Projeto de Lei Complementar 150/2021, que visa a proteção da popu- lação LGBTI+ encarcerada. O Projeto altera a Lei do Fundo Penitenciário Nacional e busca criar mecanismos para impedir a violação dos direitos humanos contra a comunidade. No entanto, aguarda designação de relator(a) na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR) desde o ano passado. A criação de alas e celas específicas para os indivíduos dessa população está dentro do Projeto de Lei voltado às unidades prisionais.
Thaís Boamorte afirma que é “extremamente preocupante” o número de celas destinadas a pessoas LGBTI+ no Paraná. “A população LGBTI+ em privação de liberdade acaba enfrentando riscos concretos de violência física, sexual, psicológica e quando não existe um espaço específico que respeite as identidades dessas pessoas, as chances de violações de seus direitos são enormes”, comenta a presidente.
Boamorte e Fogaça analisam que as pessoas em privação de liberdade devem usar os canais da Defensoria para realizar denúncias caso vejam que seus direitos foram desrespeitados. Thais complementa, ainda, que as denúncias podem ser feitas por familiares, seja pela própria Defensoria, quanto por outros órgãos como ONGs e 0 Conselho LGBTI+.
Reportagem: Gabriel Aparecido e Victor Schinato
Imagem: Victor Schinato
Edição e Publicação: Mariana Borba, Ana Beatriz, Eduarda Macedo.
Supervisão de produção: Manoel Moabis e Aline Rios