Arte sobre cicatrizes

Arte sobre cicatrizes

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Tatuagem e micropigmentação promovem a transformação de mulheres mastectomizadas através do resgate da feminilidade e autoafirmação

O câncer de mama gera a incerteza da cura, mas também ocasiona medos como o da morte, perda da maternidade, feminilidade além do medo em relação à sexualidade, isso impacta profundamente a autoestima e a imagem corporal de mulheres que precisam realizar a retirada parcial ou completa da mama. A tatuagem pode ser uma ferramenta de reconstrução e autoafirmação para as mulheres que passaram por uma mastectomia. 

“Meu seio não é um seio qualquer, é um seio cheio de arte […] que também demonstra minha força”. Esse é o relato de Bethânia Oliveira, mulher com 55 anos, que descobriu o câncer de mama no início do ano passado e operou no final do mesmo ano, processo onde retirou toda a sua mama. Oliveira conseguiu a reconstrução mamária depois de três meses após a mastectomia, mas não conseguiu reconstruir a aréola devido à falta de profissionais que realizassem esse tipo de procedimento. 

“No início, eu só pensava em me curar do câncer, não me importei com a questão da beleza, mas depois de passar o tempo, isso foi me causando vergonha e também medo de eu não conseguir mais amar o meu corpo”, conta. 

Ela menciona que sempre admirou tatuagens, tanto que possui três pelo corpo – no braço, pulso e panturrilha. Para ela, tatuar os seios não soou como má ideia, já que estava há algum tempo planejando algo diferente. “Eu estava planejando realizar uma tatuagem em estilo floral para o meu antebraço e ia fazer com meu sobrinho que tatua. Com isso, apenas mudei o local a ser tatuado e achei o resultado maravilhoso”, finaliza Oliveira.

“Isso foi me causando medo de não conseguir amar o meu corpo.”
– Bethânia Oliveira

Mastectomia radical à reconstrução
Conforme apresenta o estudo realizado pela National Library of Medicine, o câncer de mama foi citado e descrito já em 1600 A.C., em papiros dos antigos egípcios. Desde então, o tratamento cirúrgico das doenças mamárias passou por algumas fases. Em 1889, o mastologista William Halsted realizou sua primeira mastectomia radical, o que inclui a remoção completa da mama que foi afetada pelo câncer juntamente com o tecido mamário adjacente, músculos peitorais e também os linfonodos da axila.

Naquela época, o cirurgião acreditava que a reconstrução mamária seria uma “violação do controle local da doença” e advertiu para que cirurgiões não realizassem operações plásticas no local da mastectomia. 

Entretanto, com o passar dos anos, a técnica mudou para a conservação da mama e continua até os dias atuais como padrão de tratamento para câncer de mama inicial. Com o avanço da medicina, novas técnicas de aprimoramento como o uso de silicones e reutilização de tecidos musculares do próprio corpo são utilizadas. 

Já a técnica areolar existe desde 1986, quando o cirurgião Becker sugeriu tatuar a aréola mamilar de uma paciente para proporcionar um resultado melhor. Esse fato se popularizou e está presente até a atualidade. 

De acordo com a mastologista Géssica Mendes, a reconstrução mamária nem sempre inclui a reconstrução da aréola do paciente, e isso pode afetar a autoestima das mulheres. “Após a mastectomia, a área do mamilo e da aréola quase sempre é removida juntamente com a mama. Isso resulta em um aspecto visualmente diferente, que gera incômodo para aquela mulher”, explica a médica. 

Segundo Mendes, apesar da Lei da Reconstrução Mamária, que garante o direito das mulheres à cirurgia de reconstrução, troca de silicone em casos de complicações e acompanhamento psicológico, tanto no SUS ou na rede privada, ainda existem obstáculos como a falta de profissionais qualificados para realizar a reconstrução areolar, fato que impossibilita que o direito se cumpra. 

A tatuagem é uma ferramenta poderosa. Foto: Arquivo pessoal.

Dessa forma, em busca do resgate à feminilidade, beleza e a autoconfiança perdida durante esse processo e, muitas vezes, como um processo de ressignificação, as mulheres procuram na arte um caminho para a aceitação dos próprios corpos. Seja por meio das tatuagens tradicionais ou da micropigmentação areolar, uma técnica que reproduz através da aplicação de pigmentos na pele por meio de agulhas finas, a forma mais realista possível do formato, cor e também a textura dos mamilos reais. 

A professora Marli Dias, de 52 anos, descobriu o câncer em março de 2020 e logo após, recebeu a triste notícia de que precisaria fazer a retirada total da mama. Dias fez a cirurgia de retirada de mama, e logo após, fez a reconstrução mamária com prótese de silicone no final de 2022. Entretanto, não foi possível realizar a reconstrução areolar porque o hospital não oferecia o serviço. 

A professora conta que conheceu um estúdio de tatuagem que fazia a técnica de micropigmentação areolar por meio de indicação de amigas. Logo, buscou conhecer o trabalho de perto e, ao conversar com a tatuadora, entendeu que aquilo iria contribuir na maneira em que enxergaria o próprio corpo. “O meu sentimento foi de alívio, eu me senti mulher novamente, é um sentimento quase inexplicável. A micropigmentação foi capaz de salvar a minha autoestima”, afirma. 

A autoaceitação e ressignificação do corpo 

Para a psicóloga Júlia Almeida, a reconstrução areolar deixa de ser apenas um procedimento estético e passa a se tornar um aspecto crucial no processo na recuperação emocional e também psicológica das mulheres mastectomizadas. “Ao restaurar a aparência da mama, promove-se a aceitação do próprio corpo, o que facilita no desenvolvimento para uma relação mais saudável e positiva com a imagem corporal”, explica Almeida.

A psicóloga pontua que em meio a toda situação caótica, desde o descobrimento do câncer até a retirada parcial, ou ainda, total da mama, a mulher passa por enfrentamentos que marcam toda a sua vida. A tatuagem ou a micropigmentação vem como uma forma de alento e ressignificação, o que consequentemente ajuda a mulher na superação e recuperação da autoestima e amor próprio.

“É como se elas tivessem de volta o que lhes foi arrancado a força, roubado delas”. Esta é a fala da tatuadora Ivy Rodrigues, que tatua há mais de 16 anos e faz trabalhos de micropigmentação e tatuagem tradicional. A profissional criou no ano de 2016 um projeto pessoal de forma voluntária que ajuda a devolver a autoestima dessas mulheres que passaram pelo câncer de mama, por meio da reconstrução de aréolas através de tatuagens realistas.

A tatuadora relata que motivada pelo desejo de que seu trabalho fosse além e trouxesse alegria para as mulheres, decidiu realizar os trabalhos com a técnica de micropigmentação areolar de forma completamente gratuita. Ela relembra o quão difícil se torna para as mulheres passar por todo o processo do câncer. “Desde a descoberta a mulher sofre, são muitas questões, muitas incertezas, medos e procedimentos. Às vezes, em alguns casos, até o abandono do parceiro. Isso é terrível!”, ressalta.

Conforme conta a dermatologista Karen Macedo, a técnica de micropigmentação areolar cria um efeito de sombra e textura que é muito semelhante à da aréola natural. Isso pode ajudar a restaurar a aparência natural da mama e, contribuir para a reconstrução da autoestima e promover a melhora na qualidade de vida. 

“Em casos de reconstrução mamária, é utilizada para reconstruir e desenhar a aréola e mamilo na região onde a mama foi removida. Este procedimento ajuda a dar uma aparência mais natural e simétrica à região”, explica. A tatuadora Marina Alves conta que após passar por um câncer de mama, duas mastectomias e algumas outras intercorrências, nasceu o desejo de poder levar o trabalho de micropigmentação para outras mulheres de forma gratuita. “O trabalho vai bem além da estética, ajuda a reconstruir não apenas a aparência física, mas também a identidade e o senso de feminilidade das mulheres que foram mastectomizadas”, diz. 

Marina cita que a arte pode curar feridas e florir onde existiu intensa dor. Para a tatuadora, o serviço gratuito é uma forma de fazer com que essas mulheres se sintam seguras e acolhidas para irem até o estúdio realizar o procedimento. “Não teve uma cliente que saiu daqui sem um sorriso no rosto, consegui atender o desejo de cada uma delas. Algumas desejam a reconstrução areolar, outras gostam mesmo é de algo mais simbólico, como um desenho, o que significa o renascimento. É muito emocionante acompanhar”, conta orgulhosa.

Um alerta para a prevenção do câncer de mama

Conforme a Rede Brasileira de Pesquisa em Mastologia, em parceria com a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), na última década, mais de 110 mil mulheres foram submetidas à mastectomia por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o país. A cirurgia plástica reparadora é direito da mulher desde 2013, com a Lei da Reconstrução Mamária. No entanto, segundo a mastologista Géssica Mendes, nem sempre a reconstrução é imediata. Conforme a médica, quando feito em instituições públicas, existem problemas de repasses de verbas, que não conseguem arcar com todos os custos desse procedimento. Por este motivo, essas mulheres encontram a solução nos estúdios de tatuagens. Ao realizar a reconstrução areolar ou cobrir as cicatrizes da cirurgia com desenhos personalizados e significativos, as mulheres mastectomizadas podem se sentir donas de seus corpos novamente. Além disso, a tatuagem funciona como uma forma de ressignificação da dor e transforma as marcas físicas em verdadeiras obras de arte.

Reportagem e Fotos: Cristiane de Melo

Edição e publicação: Gabriela Oliveira, Kailani Czornei e Juliana Lacerda

Supervisão de produção: Ivan Bomfim e Gabriela Almeida


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