Cárcere e maternidade: grávidas enfrentam desafios e abandono

Cárcere e maternidade: grávidas enfrentam desafios e abandono

Compartilhe

No Paraná, das 2.553 mulheres privadas de liberdade, 15 estão grávidas e 7 são lactantes

 

| Por Karen Stinsky

 

A realidade do presídio feminino em Ponta Grossa expõe mulheres em situação de cárcere a condições precárias e violações de direitos, especialmente as gestantes, que precisam ser transferidas para Curitiba para receber atendimento adequado. Especialistas alertam que o sistema prisional brasileiro ignora as especificidades de gênero, resultando em punições mais severas para mulheres e em legislações formuladas sob uma ótica masculina. 

 

O cotidiano dessas mulheres chama a atenção de especialistas e juristas. Para a pesquisadora na área de mulheres privadas de liberdade, Laura Guimarães, é fundamental que o sistema carcerário seja analisado sob uma perspectiva de gênero. “A punição da mulher é sempre dupla e, socialmente, até mais severa do que para o homem. Não se trata apenas de uma transgressão à lei, mas também, de uma violação às normas da sociedade”, discorre. Ela também aponta que o poder legislativo brasi- leiro é majoritariamente composto por homens, o que faz com que as leis reflitam predominantemente a perspectiva dos homens. 

 

De acordo com o artigo “O problema das mulheres grávidas nas prisões brasileiras e o desrespeito aos direitos fundamentais e tratados internacionais”, da pesquisadora Maria Cristina de Oliveira publicado no JusBrasil, dentre as principais violações estão a superlotação das penitenciárias e a permanência em casas de detenção que carecem de infraestrutura mínima para atender às necessidades básicas. 

 

Em Ponta Grossa, a única unidade destinada às mulheres é a Cadeia Pública Hildebrando de Souza (CPHS), estrutura mista que também abriga homens. Como não há presídios femininos na cidade, mulheres grávidas são encaminhadas para a Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), localizada em Curitiba. Segundo o chefe regional do Escritório Social da Polícia Pena, Jean Fogaça, a unidade da capital conta com creche infantil e galeria materno-infantil (lactantes). “Se a mulher chega grávida ou engravida durante o cumprimento da pena, o pré-natal tem início aqui em Ponta Grossa, até ser encaminhada para Curitiba, onde o acompanhamento continua”, explica. 

Invisibilidade reforçada 

Conforme o diagnóstico “Mulheres Presas e adolescentes em regime de internação que estejam grávidas e/ou que sejam mães de crianças até 6 anos de idade”, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em Parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as condições das unidades prisionais são inadequadas para o acolhimento e saúde de gestantes, lactantes e crianças, especialmente as unidades mistas, como é o caso da Cadeia Pública Hildebrando de Souza. A pesquisadora Guimarães ressalta que a criação das penitenciárias femininas no Brasil não teve, como prioridade, o bem-estar e os direitos fundamentais das mulheres. “A grande justificativa era que a presença de mulheres perto dos homens encarcerados, sem que pudessem ser exploradas sexualmente, tornava o cárcere muito mais penoso para eles”, relata. 

 

Ainda segundo o diagnóstico, muitas mulheres grávidas ou mães cumprem penas longas, o que compromete a convivência com os filhos e filhas. O Relatório de Informações Penais, publicado no segundo semestre de 2024, aponta que em todo território nacional, existem apenas 59 celas/dormitórios para gestantes. No Paraná, são somente cinco. Quanto aos berçários, o Brasil possui 52 – sendo um deles no Paraná, com capacidade para 14 bebês. Já no que se refere às creches, o país conta com apenas cinco unidades, uma no Maranhão (com capacidade para sete crianças), uma no Mato Grosso do Sul (com capacidade para 10 crianças), uma no Paraná (com capacidade para 10 crianças) e duas em São Paulo (com capacidade para 36 crianças). 

 

Poucos estabelecimentos prisionais possuem equipe própria para atendimento no berçário ou creche, de acordo com o levantamento. Entre os profissionais registrados estão apenas dois pediatras (RJ e PB), três ginecologistas (CE, PA e RJ), cinco nutricionistas (AL, BA, MT e RS) e um cuidador (MS). Na categoria “outros” estão identificados 13 profissionais em diferentes estados (AL, DF, ES, RS, SC e SP). Nas unidades que apresentam números zerados, como no Paraná, os atendimentos são realizados por equipes externas. Vale ressaltar que há unidades que sequer informam o número de gestantes, lactantes e crianças para os levantamentos do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o que compromete a transparência e o mapeamento efetivo da situação. Em concordância, Guimarães relata ter enfrentado dificuldades para encontrar dados específicos durante a pesquisa, especialmente em relação aos presídios. “Dá uma certa impressão que esta falta de dados é intencional. Há uma carência muito grande de informações, não apenas sobre as mulheres encarceradas de forma geral, mas em especial, sobre as mulheres grávidas. Isso contribui ainda mais para a invisibilização delas. Se nem o poder público as enxerga, quem mais vai enxergar?”, questiona. 

 

O mapeamento e a produção dos dados não são de responsabilidade das unidades prisionais, mas sim, do Poder Judiciário, explica o professor Rauli Gross Junior, também pesquisador na área de pessoas privadas de liberdade. De acordo com ele, as unidades apenas executam ordens e, por isso, a ausência de informações se deve à falta de políticas do estado. “Primeiro: não há interesse efetivo do Estado em investir em sistemas de catalogação e documentação. Segundo, os próprios pesquisadores não têm interesse nessa área. Muitas vezes, o tema é tratado como uma ‘subcultura’, como se não houvesse necessidade de estudo e aprofundamento”, compartilha. 

 

Laura Guimarães também ressalta que os dados disponíveis são pouco acessíveis e de baixa didática. Além disso, normalmente não vêm de fontes oficiais, o que corrobora para as lacunas em pesquisas sobre o tema. “Essa escassez reforça ainda mais o androcentrismo do sistema penal. Não é novidade que o sistema penitenciário foi construído por homens e para homens. Assim é mal adaptado para atender as especificidades das mulheres”, afirma. 

 

Diante da falta de estrutura do sistema prisional, Jean Fogaça informa que o município de Ponta Grossa pretende ampliar a atenção à população carcerária feminina, com a criação de uma nova unidade prisional exclusiva para mulheres, com estrutura adequada, incluindo áreas para gestantes e lactantes. Porém, a proposta ainda está em fase inicial, com previsão de execução para daqui a três anos. 

Gênero, raça e classe 

Apesar da legislação garantir direitos específicos às mulheres grávidas e lactantes privadas de liberdade, como prevê a Lei de Execução Penal (Lei no 7.210 de 11 de julho de 1984), a aplicação prática apresenta muitos desafios. Um dos principais é o direito à convivência com os filhos, que muitas vezes é restrito. Há unidades que não permitem a permanência do (a) recém-nascido (a) sequer pelo período mínimo de seis meses previsto em lei. 

 

Em 2020, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a necessidade de aplicação da prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças menores de 12 anos presas preventivamente, destacando também que a privação da liberdade seja adotada somente em casos excepcionais. No entanto, o diagnóstico do PNUD revela que, mesmo após as audiências de custódia, mais de um terço das mulheres gestantes permanecem encarceradas. De acordo com professor Rauli, em casos de primeira prisão, os juízes costumam determinar medidas cautelares, que permitem que essas mulheres aguardem o julgamento em casa. Porém, muitas delas são reincidentes, o que anula a medida. 

 

Além disso, outro ponto crítico é o perfil de vulnerabilidade das mulheres privadas de liberdade. No período de julho a dezembro de 2024, dados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN) 

revelam que: 46% da população carcerária feminina brasileira era composta por mulheres pardas, 31% brancas, 15% pretas, 2% amarelas e 0,3% indígenas

 

“Se for pensar, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais da metade da população carcerária no Brasil é negra e parda. Então este sistema é marcado por desigualdade de gênero, raça e classe”, explica Guimarães. 

 

Atualmente, de acordo com o Portal Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões, a distribuição racial das mulheres privadas de liberdade no Brasil é de 16,8% pardas, 16,2% brancas, 4,6% pretas, 1,8% outras, 0,1 % indígenas e 60,4% das mulheres não têm sua etnia informada. A pesquisadora Guimarães ressalta que a população carcerária é frequentemente renegada pela sociedade; e é ainda mais preocupante a situação das mulheres negras e grávidas nesse contexto. Além desse cenário, ela aponta a falta de políticas públicas voltadas para a melhoria do sistema prisional como reflexo do desinteresse da população em garantir os direitos das pessoas privadas de liberdade. “É muito difícil encontrar candidatos que abordem essa questão em campanhas eleitorais, principalmente porque é mal visto em geral. Isso contribui para situação crítica em que nos encontramos hoje”, afirma. 

 

Para o professor Júnior, o problema está intimamente relacionado a questões sociais. Para ele, normalmente, as mulheres são presas por causa de seus companheiros ou filhos. “Quando são encarceradas, suas próprias famílias costumam abandoná-las. De acordo do Sistema de do Departamento Nacional (SISDEPEN), com dados Informações Penitenciário, menos de 10% das mulheres recebem visitas”, revela. Portanto, o professor defende que a melhoria do sistema prisional deve ir além das questões estruturais. “É necessário pensar fora da caixa e focar em aspectos sociais. A maioria das mulheres é presa por tráfico de drogas. Então, precisamos entender como esse mercado funciona e desenvolver políticas públicas que evitem sua inserção nesse contexto”, conclui. 

A reportagem também entrou em contato com a Defensoria Pública do Paraná para aprofundar questões legais, sociais e de saúde relacionadas ao tema, mas não obteve retorno até o fechamento dessa edição da revista. 

 

Reportagem: Karen Stinsky

 

Foto: João Victor Nievola

 

Edição e Publicação: Nicolle Brustolim, Mariana Borba, Ana Beatriz, Eduarda Macedo.

 

Supervisão de produção: Manoel Moabis e Aline Rios


Compartilhe
Skip to content