Colocando as opiniões para jogo
É possível os atletas de alto nível serem bem sucedidos e exercerem cidadania?
Na semana das eleições, o jogador de futebol Neymar declarou seu voto a um candidato à Presidência do Brasil, mesmo morando em Paris e não comparecendo ao pleito e, claro, a repercussão foi imediata nas redes sociais. “Se algum atleta começa a divulgar seus votos, ele vai começar a sofrer estigmas, logo ele coloca na balança os ganhos e perdas que vai ter caso assuma uma posição publicamente”, afirma o professor e pesquisador José Carlos Marques, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
(Jogadores do Brasil comemoram a vitória em Copas do Mundo ao lado dos presidentes. Arte: Yuri A. Marcinik)
Ao levar em conta a raridade da manifestação do jogador, paira a dúvida sobre o que acontece quando os jogadores rompem com a conduta de isenção tática como descrita pelo professor. Como corinthiano não praticante que sou, trago ao debate o caso da “Democracia Corinthiana” (1982-1984) e pergunto se esse surto de conscientização, que aliou busca por direitos de decisão sobre a própria carreira dos jogadores e engrossou o coro pela aprovação para as Diretas Já, não foi um exemplo benéfico de manifestação política por parte do universo desportista. Também aproveito para indagar sobre qual é o legado do movimento.
Há certa melancolia na resposta de Marques. O professor elenca os fatores que fizeram o movimento ser uma exceção à regra e um movimento ímpar na história brasileira… Enquanto durou.
“Além do Sócrates e do Casagrande havia o Wladmir, único que seguiu carreira política, e o Adilson Monteiro Alves, sociólogo e diretor de futebol do Corinthians, que era deputado estadual eleito pelo MDB em 1982”, aponta. Por outro lado, a visibilidade do movimento não seria a mesma se não tivesse a mão do publicitário Washington Olivetto. Segundo Marques, Olivetto foi uma das peças fundamentais para o lançamento do grupo e das peças que tornaram a Democracia Corinthiana reconhecida.
Marques conta como a saída dos cabeças do movimento fez com que ele se dissipasse e fosse encarado como uma aberração no status quo da imprensa especializada. “Sem essas lideranças esse tipo de movimento não tem continuação. Houve um certo desdém por parte de alguns setores da imprensa, o que aliado a estrutura hierarquizada e tão pouco democrática do esporte fez com que nem no próprio clube esse movimento tivesse ramificações ou repetições no futuro”.
Lembrando dos relatos de Walter Casagrande em “Casagrande- Num Jogo Sem Regras” (2022) é fácil entender o destino da Democracia Corinthiana. Ficou fadado a ser suprimido quando a própria diretoria do time na época tomou a dianteira para separar e vender ele e Sócrates para fora do país por conta da “má” publicidade despertada.
Na atualidade, o professor comenta a falta que essas lideranças e carisma provocam, quando explica o movimento composto por jogadores chamado de “Bom Senso F.C.” (2013-2016). A iniciativa trazia pautas relevantes como a reestruturação do calendário de competições, mas foi enfraquecido pelo teor elitista que contaminou o grupo. “O movimento acabou sendo alvo de críticas por elitizar a discussão, já que tinha como alvo principal jogadores da série A do Campeonato Brasileiro, com pouco respaldo para quem disputava séries e ligas inferiores”, explica. Nas palavras de Marques – e em minha imagem mental – o “Bom Senso F.C.” foi sepultado por conta dessa força que o esporte tem nessa questão de negociação de direitos de transmissão.
Como contraponto, o professor cita casos célebres de outros esportistas como os velocistas Tommie Smith e John Carlos nas Olímpiadas do México de 1968 em que ambos subiram ao pódio e fizeram o gesto característico do movimento Panteras Negras para dar visibilidade à causa, assim como a dedicação de Mohammed Ali na luta por direitos civis.
(1. Muhammad Ali derrota Larry Holmes em 1980. (Neil Leiffer) 2. O.J. Simpson veste a luva no tribunal em 1995. (Lee Celano). 3. Jogadores do Corinthians em manifestação a favor do movimento Diretas Já em 1983. 4. Os velocistas Tommie Smith e John Carlos erguem os punhos em manifestação contra a discriminação racial em meio a um coro de vaias em 1968. (Victoria Walker). Membros dos Panteras Negras formam fila no comício Free Huey em 1968. (Stephen Shames). Arte: Yuri F. Marcinik)
O caso de Smith e Carlos acrescenta uma nova camada de melancolia a minha mentalização da dicotomia que envolve atletas e política. Ainda que foram restituídos em outro momento, os atletas foram punidos com a devolução das medalhas pelo Comitê Olímpico. Em uma época em que o Movimento dos Panteras Negras sofria diversas perdas consideráveis – a prisão dos fundadores Huey Newton e Bob Seale e o assassinato de Fred Hampton pela CIA. Vale lembrar que a isenção e renegação do movimento por direitos civis de O.J. Simpson lhe proporcionaram uma bolsa de estudos além de um ingresso na liga de futebol americano dos Estados Unidos (NFL). Fica difícil manter a esperança em relação a necessidade de cidadania dos grandes desportistas. Vale lembrar que O.J. Simpson, acusado de assassinar a ex-esposa e o marido em 1994, foi absolvido.
O mito de Davi contra Golias me veio à mente após a conversa com Marques; costumava ser uma fonte de esperança para situações como essa. Agora, é uma lástima que seja mais lembrado pela disparidade das forças que evoca do que pelo desfecho otimista do conflito.
Ficha técnica:
Reportagem: Yuri F. Marcinik
Edição e Publicação: Gabriel Clarindo Neto
Supervisão de produção: Cândida de Oliveira, Carlos Alberto de Souza, Muriel E. P. Amaral
Supervisão de publicação: Carlos Alberto de Souza, Cândida de Oliveira