“Cultura é o grande instrumento de transformação da cidade”
Alberto Portugal compartilha sua visão sobre a importância da cultura para o desenvolvimento da cidade
Artista, professor e arquiteto, Alberto Schramm Portugal também é, desde janeiro de 2022, Secretário Municipal de Cultura de Ponta Grossa. Ele iniciou sua trajetória artística no teatro aos oito anos e tem uma carreira de quase duas décadas como gestor público na área da cultura. Em entrevista à Nuntiare, Portugal compartilhou sua visão sobre a importância da cultura para o desenvolvimento social e econômico da cidade, e também abordou questões como a transformação da Fundação Municipal em Secretaria, os ataques ao setor cultural durante o governo Bolsonaro, as medidas para universalizar o acesso à cultura em Ponta Grossa e as críticas enfrentadas pela atual gestão.
NUNTIARE: Poderia falar um pouco sobre como foi a sua trajetória como artista?
ALBERTO PORTUGAL: Desde que eu me entendo por gente, tenho uma relação muito forte com a arte. Minha família é toda da área do direito. Todos. Meu pai, meu avô, meu bisavô. Eu brinco que eles foram para o direito e eu fui para o esquerdo, eu fui para as artes. Então, eu sou apaixonado por cultura. Eu comecei a fazer teatro com oito anos de idade. Me formei na Faculdade de Artes Visuais. Faz 18 anos que eu vivo com o Guilherme Tupich, que é um bailarino. Juntos nós abrimos a Casa das Artes, que é uma companhia de teatro e de dança. E em vários momentos da minha vi da, eu acabei me voltando para a gestão de cultura. Eu acredito que cultura é o grande instrumento de trans formação da cidade e da vida das pessoas. Então, a minha história passou pela literatura. Eu tenho alguns livros publicados. Quando eu me formei em arquitetura, foi pelo viés do patrimônio cultural. Já produzi algumas coisas em audiovisual. Tenho uma produção nas artes visuais, com algumas exposições. E, principalmente, no teatro, que é a minha grande paixão.
NUNTIARE: Como você chegou ao cargo de secretário da Cultura de Ponta Grossa?
AP: Em 2005, a secretária de Cultura era a Elizabeth Schmidt, que hoje é nossa prefeita. Nós já temos um vínculo de muitos anos. Logo que ela assumiu me chamou para o setor de artes visuais, que na época era a Estação Arte. Foi aí que eu despertei minha paixão pela gestão de cultura, não é uma gestão meramente burocrática. Política pública de cultura é uma coisa e a gestão administrativa da cultura é outra.
Em 2018, retornei a Ponta Grossa. Eu tinha ido para Curitiba, onde fiz minha faculdade. Depois fui para Tibagi, onde trabalhei com turismo e cultura. Quando voltei a cidade, a Elizabeth estava como vice prefeita e me chamou para assumir o Departamento de Patrimônio Cultural. Logo que ela foi eleita prefeita, me convidou para assumir a presidência da Fundação Municipal de Cultura, que hoje é a Secretaria. Já nos conhecíamos bem e acho que a ideia do prefeito é que os secretários estejam alinhados com a sua proposta de trabalho e com suas crenças em termos de gestão.
Hoje estou aqui, aceitei o desafio e amo o que faço. Sou extremamente dedicado ao meu trabalho. Nossa equipe na Secretaria é formada por pessoas ope racionais, que trabalham ativamente pela cultura e não apenas atendem no balcão.
NUNTIARE: Você serviu como presidente da Fundação Municipal de Cultura até o momento em que foi extinta e transformada em secretaria. Quais as principais diferenças entre a fundação e a secretaria de Cultura em termos de estrutura e de função?
AP: Houve um período em que a captação de recursos pelo poder público era uma possibilidade. Como fundação, tínhamos condições de captar recursos do governo federal e do governo do estado. A partir do momento em que não conseguimos ser captadores de recursos, continuar sendo uma fundação municipal não trazia benefícios, pois tínhamos uma estrutura independente da prefeitura que apenas gerava mais gastos. Sendo uma secretaria municipal temos menos despesas. Vários contratos são incorporados aos da prefeitura, o que gera economia que pode ser revertida em projetos de políticas públicas de cultura. Então, isso deu uma enxugada. As pessoas julgavam que, por ser uma fundação, nós teríamos uma autonomia e nós não tínhamos. Uma fundação é um órgão à parte da Prefeitura que pode captar e arrecadar recursos. Hoje a gente está adequado com a melhor forma de ter menos gastos dentro dessa estrutura e poder continuar tendo a mesma autonomia. Na prática, isso não mudou quase nada. Pelo contrário, a gente conseguiu economizar e esse recurso está sendo aplicado em vários programas.
“Quando tem cultura acontecendo, a gente tem desenvolvimento de senso crítico das pessoas”.
NUNTIARE: Quantos eventos foram realizados ano passado no Cine Teatro Ópera e como funciona a manutenção do local?
AP: Tivemos em 2023, ao todo, 217 eventos sendo realizados na cidade toda, promovidos pela prefeitura. Já o Cine Teatro Ópera recebe eventos que são promovidos pela Secretaria, municípios e a grande maioria dos eventos são eventos privados. A gente passa da marca de 77 mil visitantes dentro do teatro. Realizamos manutenções permanentemente, nós temos o contrato ativo de manutenção corretiva. Ou seja, 77 mil pessoas vão, inevitavelmente, estragar uma poltrona, por exemplo. São cenários gigantescos que entram e saem daquele teatro todo dia. As luzes do Cine Teatro Ópera ficam acesas, às vezes, 24 horas por dia. Isso porque está saindo uma montagem de cenário e entrando outra, ao mesmo tempo. Então naturalmente, vai realmente ter um desgaste imenso. A Secretaria é responsável pela manutenção permanente do Cine Teatro Ópera. Mas não é todo evento. Não significa que terminou um espetáculo, a gente vai lá no mesmo dia e vai arrumar. Se tem um espetáculo ou um concerto marcado para amanhã, eu não posso ligar para você e falar: “Viu, cancele o evento que eu vou precisar fazer manutenção”. Então, a gente vai adaptando da melhor forma possível. Esse ano nós demoramos mais para reabrir. Foi fechado até março, porque nós fizemos todo o processo de acessibilidade. Acho que vocês chegaram a observar as faixas táteis. A gente está trocando o elevador do fundo, que é o elevador de cargas. Agora ele vai ser um elevador com acessibilidade. Nós vamos substituir os banheiros. Posso te dizer que já foram trocados os pisos por piso antiderrapante, com barra de acessibilidade. Foram instalados banheiros novos. A manutenção é permanente. Não tem um prazo para acontecer, mas ela está acontecendo sempre.
NUNTIARE: Quais são as unidades culturais presentes em Ponta Grossa?
AP: Temos as 12 unidades culturais e os polos do Programa Satélite Cultural. O Programa Satélite é uma forma de descentralização. Em relação às unidades culturais, elas, na sua maioria, estão na região central. De unidades culturais temos a Biblioteca Pública, o Centro de Música, onde fica o Conservatório, a Casa da Memória, Escolinha do Patrimônio Cultural, Museu Municipal Aristides Spósito, Acervo Municipal de Obras de Arte, Centro de Cultura, que vai virar um cinema e já está em processo de instalação dos equipamentos, CEU das Artes, Estação Paraná, que está fechada, aguardando aprovação do projeto para restauração, Centro de Criatividade, Acervo de Obras de Arte, Ponta Azul e Concha Acústica. O Programa Satélite Cultural é nosso, mas os pólos não são nossos nem são administrados por nós. Nesses pólos são promovidas algumas oficinas que acontecem em bairros como o Santa Luzia, Vila Isabel, Nova Rússia, Sabará, Jardim Carvalho, 31 de março e Santa Mônica. Esses pólos ficam no espaço dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) ou dentro das Associações de Moradores. São locais em que a gente fez um mapeamento e constatamos a necessidade de oferta de oficinas. A ideia do Satélite é super legal, porque a gente não vai impor uma modalidade para a comunidade. Vamos propor um conceito de oficina. Não é oficina de violão, não é oficina de flauta, não é oficina de canto, é uma oficina de música. Então, os articuladores culturais vão chegar em um determinado local e vão ver as demandas do que a comunidade tem interesse. Por exemplo, há o interesse em viola caipira? Então vamos fazer oficina de viola caipira. O objetivo do Projeto é chegar na comunidade e fazer a leitura do cenário para desenvolver a oficina.
NUNTIARE: O Plano Municipal de Cultura de Ponta Grossa aprovado em 2017 define políticas para a cultura por dez anos. O 1o e o 2o artigo do plano citam a universalização do acesso à cultura. Quais as medidas foram e estão sendo tomadas para executar a universalização do acesso à cultura?
AP: Nós temos realizado muitas ações descentralizadas, tentando sair dessa caixa de conforto das 12 unidades culturais. É muito legal fazer um evento no Teatro Ópera, porque lá é confortável, a estrutura está pronta, os recursos estão disponibilizados e é mais barato. Em contrapartida, é muito difícil a gente conseguir trazer as comunidades mais periféricas para dentro desse espaço. Por exemplo, a nossa Orquestra Sinfônica completa 70 anos em 2024. E para isso a gente pensou num programa que se chama Viva Nossa Orquestra, em que a orquestra vai se apresentar em locais completamente remotos. Vai chover? Vai chover. Vamos ter que sair correndo se chover? Sim, vamos ter que sair correndo. Essa universalização significa trabalhar com pluralidade para que todo mundo se sinta o mais acolhido possível em termos de diversidade religiosa, diversidade de gênero, diversidade de oferta e de programação. Universaliza-se o acesso à cultura quando agente tira uma galeria de arte que não funcionava e coloca ela na boca do calçadão, que é o Ponto Azul. Lá todos podem ter acesso. Em um mês no Ponto Azul, gente teve mais visitas do que em dois anos na antiga galeria que ficava no andar de cima do Centro de Cultura. Universaliza-se o acesso à arte quando a gente cria um centro de criatividade que tem todos os equipamentos para quem quer produzir e não tem grana para isso. Lá tem tinta, tem madeira, tem serra, tem furadeira, tem martelo, tem tudo, pode fazer barulho. Universaliza-se o acesso à arte e à cultura quando a gente cria um museu que está abrindo aos sábados, que está com ações à noite e que está recebendo 700 pessoas num único dia.
NUNTIARE: O Coletivo de Trabalhadores e Trabalhadoras da Arte de Ponta Grossa (COLARTE) publica anualmente uma carta aberta à Secretaria Municipal e à Prefeitura. Nos últimos dois anos, houve reclamações sobre a ausência de informações precisas em editais e sobre a demora no pagamento de projetos. Como a Secretaria tem respondido a essas reivindicações e quais medidas específicas foram tomadas em relação a isso?
AP: Nós trabalhamos de portas abertas, recebemos absolutamente todas as pessoas que chegam aqui, a hora que for. Eu não sei quem é essa associação. É uma associação que não se apresentou até hoje à nós. E nós respondemos no ano de 2022 a respeito de um atraso de pagamento, que de fato aconteceu, mas porque nós tínhamos uma particularidade de um dos editais que foi publicado muito depois devido a uma deliberação de um dos conselheiros de política cultural. Nós insistimos que o edital deveria ter sido publicado antes porque entraríamos num período de recesso de final de ano e realmente atrasou cinco dias do pagamento. É muito importante que exista um alinhamento entre a ideia da elaboração de um edital e o trâmite que existe dentro de uma prefeitura. O processo é burocrático. Nós, em Ponta Grossa, não somos mais burocráticos do que qualquer outro município. Nós temos que seguir uma série de normas, de leis e de processos que recaem sobre a prefeitura. Esse coletivo fez uma carta pública e nós respondemos. Conversamos, sim, mas desde que a gente saiba quem tem nos procurado.
NUNTIARE: O Programa Municipal de Incentivo Fiscal à Cultura, o PROMIFIC, possibilita pessoas e empresas incentivarem projetos culturais de artistas de Ponta Grossa através da agência fiscal, encaminhando até 60% do IPTU para os projetos aprovados. É um dos mecanismos de financiamento à cultura previsto no Plano Municipal de Cultura. A partir do encaminhamento desses até 60% do IPTU de pessoas e empresas para os projetos aprovados, como é realizada exatamente a administração dessa verba?
AP: O PROMIFIC é um programa em que os interessados inscrevem seus projetos, e a avaliação é feita por uma banca externa. Nós temos um banco de pareceristas, formado por pessoas que moram no Brasil inteiro. Se você é da área da música, um avaliador da área da música que não te conhece vai avaliar o seu projeto. Caso seja aprovado, você tem dois anos para realizar essa captação de recursos e a execução do seu projeto. Por isso, hoje, em 2024, a gente está executando ainda projetos que foram aprovados em 2022. Uma vez aprovado o seu projeto, você pode captar com uma grande indústria ou diretamente com várias pessoas que vão assinar um documento dizendo que, ao invés de pagar 100% do IPTU para a Prefeitura, gostaria de pagar 60% do IPTU para um projeto.
Esse recurso vai cair na conta do próprio proponente. O proponente vai executar o projeto e prestar contas para o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural. No encerramento dos dois anos, você apresenta um relatório com todos os gastos e então o Conselho vai aprovar o seu relatório final ou não. É normal que em dois anos ocorram alterações, tanto de equipe, de trabalho, quanto de eventuais mudanças no valor de algum serviço, cabe ao indivíduo apresentar e o Conselho vai deliberar. E é uma super ferramenta que pouquíssimas cidades têm. Aqui no Paraná eu conheço só Londrina, que tem um programa similar ao nosso. E são muitas cidades que usam como referência esse programa, que esse ano vai ultrapassar a marca dos 600 mil reais para execução de projetos.
NUNTIARE: Um levantamento do Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística apontou que, durante os três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, foram registrados ao menos 211 casos de censura, desmonte institucional do setor cultural e autoritarismo contra a cultura. Destes, 72% partiram do Governo Federal. Como secretário da cultura e como artista, de que forma você enxerga a figura de Jair Bolsonaro e o que esse governo representou para a Cultura?
AP: Quando se ataca cultura, se ataca a manifestação legítima de expressão do ser. Cultura é manutenção de saúde pública, cultura é manutenção de vigilância urbana, porque quando tem um evento acontecendo na rua o índice de violência e de criminalidade é muito menor. Quando tem cultura acontecendo, a gente tem desenvolvimento de senso crítico das pessoas, economia criativa e um PIB econômico sendo gerado. Segundo dados do IBGE, em 2023 a cultura movimentou mais do que a indústria automobilística do Brasil. E qualquer forma de ataque a artistas, a fazedores e fazedoras da cultura, às figuras que mantêm viva a cultura e ao conjunto de interesses de um determinado grupo, mesmo que nós não façamos parte desse grupo, nós estamos pensando apenas no nosso umbigo. Eu parto do princípio que as artes são serviços essenciais, tanto quanto saúde, quanto educação, quanto qualquer outra área. Quando aperta o orçamento, a primeira área que se corta no Brasil é a cultura, infelizmente. E isso não ocorre em Ponta Grossa hoje. Pelo contrário, nós estamos vivendo um momento de maior investimento. Em relação à figura de Jair Bolsonaro, como vocês mencionaram na pergunta, que atacou a cultura, ao meu ver, é ruim esse ataque. É péssimo, mas eu estou trabalhando aqui exatamente para mostrar para as pessoas o quanto cultura e arte são importantes. E vou bater de frente com qualquer postura, de qualquer pessoa, que diga que arte, cultura e artistas não são importantes, com qualquer pessoa que diga que, em uma cidade, espaços de cultura, projetos de cultura e a universalização de cultura não é importante, pois é algo de muita relevância para a sociedade.
Reportagem e Fotos: Alex Dolgan, Camila Souza, João Pizani e Tayná Landarin
Edição e publicação: Bianca Voinaroski e Juliana Lacerda
Supervisão de produção: Ivan Bomfim e Gabriela Almeida