Da terra para a alma

Foto: Amanda Dal Bosco.

Da terra para a alma

Compartilhe

O uso de ervas sagradas indígenas para cura física e espiritual

A estrada é de chão, em um percurso de aproximadamente 45 minutos do centro de Ponta Grossa até o destino final em Itaiacoca: a Casa Flores de Jagu be. À primeira vista, uma residência grande de madeira, no meio do mato, com apenas uma pequena placa que anuncia as práticas com ervas naturais que acontecem dentro das paredes do velho casarão. A recepção? Cachorros soltos que brincam pela vasta área verde em que se estende a Casa. 

A Casa Flores de Jagube surgiu em 2017 e se caracteriza como local de rezas com medicinas naturais, com base religiosa do Xamanismo. As práticas ancestrais têm como objetivo estabelecer contato com o mundo espiritual. Os rituais xamânicos são realizados mediante músicas, danças e consumo de enteógenos, como a ayahuasca, rapé, sananga e kambô. 

Imagem: Google Maps.

O instituto xamânico está sob a tutela de Ananta, guardiã e mestre espiritual das cerimônias e rituais, que se responsabiliza em supervisionar os cuida dos do estado dos participantes e também de trazer diferentes culturas de tribos indígenas para realizar os ritos com as medicinas. Segundo a mestre das cerimônias, o local é um espaço de renovação e descoberta, onde os ensinamentos ancestrais se entrelaçam com as práticas contemporâneas de medicina natural. 

“A ayahuasca é como uma mãe, ao mesmo tempo que ela coloca você nos braços e dá um carinho, ela te bate também.”

No Flores de Jagube, são realizados rituais através de uma série de medicinas naturais, cada uma com seu propósito específico. Conhecida por vários nomes em diferentes grupos indígenas, de acordo com Ananta, a ayahuasca é celebrada como um expansor de consciência, que abre portas para a percepção do eu interior e do plano astral. Sob a orientação da guardiã e segundo suas experiências, a ayahuasca não apenas desempenha um papel na cura de aflições como depressão e dependência química, mas também serve como um guia para o autoconhecimento.
O acesso a essas medicinas não é liberado para todos. Ananta e sua equipe exercem um discernimento sobre quem pode participar. Pessoas com condições específicas, como esquizofrenia, transtorno bipolar em fase depressiva e epilepsia, são recomendadas a não participar devido aos potenciais riscos envolvidos.

A participação nas cerimônias, segundo a guardiã, deve ser marcada por um chamado interior e no interesse de adentrar em uma jornada de autoconhecimento e cura. Ananta, através de seu Instagram, convida aqueles que querem iniciar uma conversa, a fim de compreender suas motivações e expectativas, buscando garantir que o local seja um espaço de seriedade e respeito.

Bryan Moreno Gomes da Silva, trabalhador autônomo de 27 anos, enfrentou uma batalha contra o vício por cinco anos, imerso em um ciclo de dependência de substâncias como cocaína e crack, que o levou a viver nas ruas. Após diversas tentativas de buscar soluções convencionais, ele foi apresentado à ayahuasca por um parente próximo. “A ayahuasca é como uma mãe, ao mesmo tempo que ela coloca você nos braços e dá um carinho, ela te bate também, faz você aprender dando sermão, te mostra onde está errado” afirma.

Como também é músico, Bryan se viu atraído pela musicalidade dos rituais e das cerimônias de ayahuasca. Ele gradualmente se tornou parte ativa na Casa Flores de Jagube, onde ele auxilia nas cerimônias, canta rezos e exerce a função de apoio para os participantes durante o processo. Apesar das demandas da vida cotidiana, Bryan continua engajado nas práticas da Casa, vendo a ayahuasca como uma terapia e uma conexão com o divino. Ele enfatiza a distinção entre a ayahuasca e as drogas sintéticas, e destaca seu papel vital em sua jornada de recuperação: “Ayahuasca para mim é uma terapia, é um pedaço de Deus que você toma.”

Para ele, a ayahuasca não apenas o ajudou a superar o vício, mas também o fez repensar sua abordagem à vida. Ele informa também sobre o papel do rapé como parte integrante do ritual da ayahuasca, que contribui para abrir o campo espiritual antes da ingestão da bebida sagrada.

Vivian Canteri, a companheira de Bryan, também encontrou conforto e reflexões através das medicinas naturais, testemunhando sua jornada de transformação ao lado dele. Segundo ela, suas experiências refletem a capacidade das medicinas naturais de proporcionar a cura holística e pensamentos profundos, transcendentais às limitações da mente e do corpo, que colaboraram para que Vivian perdesse o peso da solidão.

Tradições ancestrais 

“As medicinas como ayahuasca, jurema, sananga, rapé, cachimbo, são medicinas mães, medicinas que nós povos originários somos guardiões e levamos no tra balho adentro de uma pajelança do xamanismo para aquelas pessoas que vão em busca de se encontrar o seu eu”. A fala é de Makairy Inácio de Matos e Silva, mais conhecido como Makairy Fulni-ô. O indígena Fulni-ô, de 41 anos, de Águas Belas, Pernambuco, que trabalha há mais de 20 anos com plantas sagradas e rituais xamâni cos, incluindo os realizados na Casa Flores de Jagube. 

Ao longo desse tempo e da experiência, Makairy indica que cada participante tem que ter a sua própria consciência, se busca uma cura física/espiritual e/ou sua conexão ancestral. Ele explica que todo o povo brasileiro tem em suas veias sangue dos povos originários e que, ao participar de um ritual xamânico, a pessoa vai sentir pulsar dentro dela. 

Essa percepção é válida também para os líderes que conduzem as cerimônias. Fulni-ô explica que é preciso se concentrar, conectar com o momento e esquecer o resto, para não atrapalhar na busca dos participantes. “Durante os rituais, cada pessoa entra na sua conexão. Nós que estamos ali à frente do altar somos condutores, somos instrumentos aonde a medicina, após nos conectarmos com ela, ela faz toda a guiança”, comenta. 

Quem busca participar dos rituais, no momento em que se inscreve já recebe algumas orientações para se preparar para a cerimônia. Makairy relata que a pessoa não pode usar drogas ou álcool de três a cinco dias antes do ritual, assim como não ter relações sexuais e cuidar para ter uma alimentação básica – como forma de se conectar com a medicina e sentir a cura. 

Sair das aldeias, da mata, da caatinga, da floresta para fazer os rituais é um desafio enfrentado pelos indígenas, conforme relatado por Makairy. “Para fazer um trabalho num espaço, dentro de uma casa, é diferente de você estar em conexão diretamente com a mata, é muito difícil, mas aí entendemos que a medicina faz a gente se conectar, abre esse campo magnético, abre a expansão de consciência, e você consegue sentir realmente a força da floresta.” 

Medicina industrial 

Quem toma remédios psiquiátricos pode participar dos rituais? Questionado sobre essa questão, o psiquiatra Tarcísio Dornelles conta sobre os potenciais riscos e benefícios da combinação de medicamentos psiquiátricos com as medicinas naturais, como ayahuasca, sananga, rapé e kambô. Dornelles destaca a importância de distinguir aspectos culturais e farmacológicos, pois as interações podem afetar a eficácia e segurança de deter minados tratamentos como depressão e ansiedade. De acordo com o psiquiatra, os riscos específicos associados à combinação desses medicamentos incluem possíveis alterações na depuração dos medicamentos psiquiátricos, o que pode resultar em efeitos colaterais indesejados ou até mesmo toxicidade. Ele ressalta a necessidade de precaução por parte dos pacientes e alerta que tais substâncias não de vem ser usadas com objetivo de substituir os trata mentos psiquiátricos indicados. 

Casa de rezas da Casa Flores de Jagube. Foto: Amanda Dal Bosco.

Quanto aos potenciais benefícios e desafios da combinação de tratamentos psiquiátricos tradicionais com medicamentos naturais, Dornelles menciona a existência de pesquisas em andamento, mas enfatiza a falta de resultados conclusivos e a ausência de libe ração por parte dos órgãos reguladores. 

Com relação à abordagem médica, o psiquiatra destaca a importância da comunicação aberta entre médico e paciente, e incentiva os pacientes a relatar o uso dessas substâncias, pois isso pode influenciar no diagnóstico e tratamento. Tarcísio enfatiza que os profissionais da saúde façam perguntas claras e objetivas aos seus pacientes sobre o uso dessas medicinas alternativas. 

A questão é complexa. Deve-se considerar e respeitar a cultura e a tradição ancestral do uso das ervas sagradas, assim como os saberes da medicina moderna, além de compreender potenciais riscos para a saúde física e mental. É preciso diálogo entre as partes com a perspectiva de que cada ser humano reage de forma única e individual, para que haja uma abordagem segura e inclusiva.

Reportagem e Fotos: Amanda Dal’Bosco e Manuela Rocha

Edição e publicação: Kailani Czornei e Juliana Lacerda

Supervisão de produção: Ivan Bomfim e Gabriela Almeida

 


Compartilhe
Skip to content