
Justiça restaurativa para humanização do sistema prisional
Projeto forma facilitadores e propõe alternativa do modelo punitiva
| Por Annelise dos Santos
Na Unidade de Progressão de Ponta Grossa (UPPG), as salas comuns ganham novo significado durante os encontros do projeto Travessia. A construção de um círculo de conversa recebe as Pessoas Privadas de Liberdade (PPL) da iniciativa de justiça restaurativa. Ali, o foco está no diálogo, na escuta e na construção de vínculos. A proposta da justiça restaurativa não se concentra no crime, vai além e busca entender, a partir do diálogo, as relações entre as pessoas envolvidas. A iniciativa pretende encontrar formas de reparar o dano por meio da conversa, escuta e tentativa de reconstruir os laços rompidos, em vez de simplesmente punir quem errou.
A iniciativa é desenvolvida pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) em parceria com o Instituto Mundo Melhor (IMM) e com o Conselho da Comunidade. Voltado para PPLs na Unidade de Progressão de Ponta Grossa, que estão em fase final de cumprimento de pena, o projeto promove práticas restaurativas por meio de círculos de diálogo, realizados em quatro encontros por mês, o que é revertido em progressão de pena para os participantes. Com a iniciativa, a facilitadora experiente em justiça restaurativa e pedagoga no instituto, Érica Lemes, afirma que as Pessoas Privadas de Liberdade se sentem reconhecidos pelo sistema, em um ambiente que estão acostumados a seguir regras. “Eles sabem que é um espaço onde ele pode ser humano e falar do que ele sente, do que ele precisa, do que ele gosta, do que ele sonha, do que ele se arrependeu. Então esses encontros para eles são mais que uma reflexão sobre o ato, sobre o seguir em frente, mas uma oportunidade de ser visto e ter voz num lugar onde além da liberdade de ir e vir, eles não têm liberdade para falar” comenta. Nestes encontros, os participantes são convidados a refletir sobre suas vivências, vínculos familiares, planos e arrependimentos, sem focar no crime cometido. “Hoje, a ideia é que todos que chegam na unidade participem”, explica a facilitadora. O projeto contabiliza 90 participantes em nove turmas desde seu início, em 2019.
A justiça restaurativa, como define a juíza e coordenadora do CEJUSC em Ponta Grossa, Heloísa Krol é uma prática autocompositiva que visa à reparação dos danos e ao restabelecimento das relações. Diferente da lógica retributiva, que pune, ela dialoga. “Não se trata só de indenização ou pena. É sobre entender o que levou ao ato, como a vítima se sente e como a comunidade foi afetada”, pontua.
Em Ponta Grossa, a formação de facilitadores de justiça restaurativa é oferecida de forma gratuita através de um curso com oito encontros presenciais, além de estágio supervisionado com duração de dois anos. Podem se inscrever pessoas com mais de 18 anos que saibam ler e escrever. As formações ocorrem por meio de convênios firmados entre o CEJUSC, Instituto Mundo Melhor, Conselho da Comunidade e Departamento Penitenciário. O curso é custeado com verbas de prestação pecuniária e exige que os alunos realizem atendimentos reais como forma de retribuir à sociedade.
O projeto Travessia é um dos campos obrigatórios de estágio. É nele que os novos facilitadores atuam diretamente com os internos, sempre em duplas e com acompanhamento pedagógico. Segundo Érica, o processo todo é “artesanal”: exige tempo, escuta ativa e a certeza de que nada é imposto. “A justiça restaurativa é sempre um convite, nunca uma obrigação”, reforça.
As histórias nascem e se transformam nesses círculos. Érica relembra o caso de um adolescente que, após postar mensagens ameaçadoras nas redes sociais, poderia ter sido criminalizado. “Fomos escutar, entender o que havia por trás daquilo. Descobrimos um histórico de bullying, abandono e HIV. Encontramos a família paterna que ele nem sabia que existia. No fim, ele ganhou irmãs, primos e uma avó. E se responsabilizou pelo erro”.
Além do sistema penitenciário, a justiça restaurativa também é aplicada em casos oriundos de diferentes setores do Judiciário. A juíza Heloísa explica que os processos encaminhados ao CEJUSC passam por uma triagem, que avalia se há espaço para o diálogo entre as partes envolvidas. Em situações como perturbação do sossego, conflitos de vizinhança ou disputas familiares, por exemplo, a prática restaurativa é utilizada para promover acordos que vão além das soluções jurídicas formais. Os facilitadores atuam em casos pré-processuais e processuais, sempre com foco na reparação das relações afetadas e no fortalecimento da convivência comunitária. A juíza reforça que a proposta é uma forma de humanizar a justiça. “A prisão não é perpétua. Essas pessoas vão voltar à sociedade. A justiça restaurativa ajuda no processo de compreensão e responsabilização, para que esse retorno aconteça de forma mais consciente”, declara. Para Érica, o maior desafio ainda é o desconhecimento e a resistência de quem confunde a proposta com impunidade. “Não se trata de passar a mão na cabeça. É assumir responsabilidades, é dar sentido” explica.
Além disso, a parceria entre o CEJUSC e o Instituto Mundo Melhor está presente em outras instituições da sociedade civil. Em escolas, por exemplo, os facilitadores formados pelo projeto atuam diretamente com estudantes e equipes pedagógicas. A proposta vai além da mediação de conflitos pontuais, buscando construir um ambiente mais colaborativo e empático ao longo do ano letivo, evitando práticas como bullying.
Uma das dificuldades encontradas na aplicação da justiça restaurativa no sistema prisional, segundo Érica, é a falta de regulamentação da atuação dos facilitadores no Brasil. “Diferente do mediador judicial, que é remunerado, o facilitador atua de forma voluntária, o que dificulta a continuidade dos projetos em larga escala”, pontua. Além disso, a aplicação da justiça restaurativa exige tempo e dedicação, por isso o trabalho voluntário não é incentivado.
A experiência de Ponta Grossa mostra que a justiça restaurativa pode ser implementada de forma estruturada, com resultados concretos na vida de pessoas privadas de liberdade e nas instituições que acolhem a prática. Ao investir em formação, articulação institucional e compromisso com o diálogo, a proposta se consolida como um caminho viável para promover a responsabilização e a reconstrução de vínculos sociais fora da lógica punitiva.
Reportagem: Annelise dos Santos
Foto: Acervo Mundo Melhor
Edição e Publicação: Nicolle Brustolim, Mariana Borba, Ana Beatriz, Eduarda Macedo.
Supervisão de produção: Manoel Moabis e Aline Rios