
Plano Pena Justa e os desafios no sistema prisional de Ponta Grossa
Superlotação, reformas atrasadas e falta de verbas são impasses na execução da proposta
| Por Laura Urbano
O Brasil convive há anos com uma realidade prisional que viola de forma sistemática os direitos fundamentais dos cidadãos. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 347, uma ação ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que o sistema carcerário brasileiro vive um “estado de coisas inconstitucional”. Superlotação, insalubridade, violência institucional, negligência médica, dificuldade no acesso à educação, má alimentação e violações processuais são sintomas de um sistema adoecido, espaços em que o encarceramento em massa tornou-se regra e não exceção.
Com o objetivo de enfrentar esse cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Ministério da Justiça e com apoio técnico do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), lançou em fevereiro de 2025 o Plano Pena Justa – Plano Nacional para Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras. A proposta é composta por 51 ações e 306 metas até 2027, organizadas em quatro eixos fundamentais: controle de vagas, reestruturação de infraestrutura, ampliação de alternativas penais e fortalecimento da reinserção social. Para o desenvolvimento do Plano Pena Justa, foram realizados debates entre diversos setores da sociedade e do poder público.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública considera o Pena Justa como uma tentativa de mudar a lógica do sistema penal brasileiro. O ponto de partida é simples, mas revolucionário: não se combate a violência com mais exclusão e violação de direitos fundamentais. Isso significa priorizar medidas que desafoguem o sistema, como a revisão de prisões preventivas, a substituição de penas de curta duração por serviços comunitários e o investimento em programas educativos e profissionais dentro e fora do cárcere.
Ao mesmo tempo, o Plano prevê a criação de Escritórios Sociais em todo o país, para oferecer acolhimento, capacitação, reinserção no mercado e acompanhamento psicossocial aos egressos e familiares. A lógica dos Escritórios Sociais é combater a reincidência, oferecendo caminhos para a reconstrução da vida fora do crime. Atualmente, segundo o relatório Reincidência Criminal no Brasil, do Departamento Penitenciário Nacional e da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), mais de 40% das Pessoas Privadas de Liberdade (PPL) no Brasil são reincidentes.
Realidade distante do ideal
Entre o papel e a prática, existem camadas complexas. Em Ponta Grossa, a realidade prisional reflete tanto os avanços, quanto as contradições do sistema. O município abriga três unidades prisionais principais: a Penitenciária Estadual, a Unidade de Progressão e a Cadeia Pública Hildebrando de Souza, além da 13ª Subdivisão Policial, que funciona como carceragem de passagem. Embora o fluxo entre as unidades tenha sido otimizado nos últimos anos, os desafios estruturais persistem.
Segundo o delegado-chefe da 13ª Subdivisão Policial, Nagib Nassif Palma, a aplicação de medidas alternativas é desejável, mas exige organização e vigilância. “Temos que garantir que as medidas alternativas sejam eficazes. Se o sujeito comete um crime e não sofre nenhuma consequência, a sociedade começa a achar que ‘não dá em nada’. E isso fragiliza a segurança pública e estimula novos delitos”, afirma.
Na perspectiva da advocacia criminal, o Plano Pena Justa representa uma oportunidade de repensar o punitivismo estrutural que domina o Judiciário. “Há uma ideia muito enraizada de que a melhor forma de punição é a prisão. Mas isso inchou o sistema e abriu o espaço para o crime organizado agir dentro das unidades. A superlotação impede qualquer política de ressocialização’, explica o advogado e professor de Direito Processual Penal na Universidade Estadual de Ponta Grossa, João Maria de Góes Júnior. Para ele, o excesso de prisões não é apenas ineficaz, mas prejudicial e danoso. “A reincidência criminal não é só falha do indivíduo, mas da ausência de política pública. Quando o Estado apenas joga a pessoa para dentro do sistema e esquece dela, está, na verdade, alimentando o ciclo da violência”, reforça.
Além dos problemas estruturais
As questões apresentadas vão ao encontro do relato de Ermar Toniolo, presidente do Conselho da Comunidade de Ponta Grossa – órgão previsto na Lei de Execução Penal e responsável por acompanhar a situação dos apenados e prestar apoio material e moral às unidades prisionais. Para Ermar Toniolo, o maior problema, principalmente em Ponta Grossa, continua sendo a superlotação. “Chegamos a ter unidades com até 400% de ocupação. Hoje, com a abertura de novas vagas, a média está em torno de 200%, mas isso ainda é muito acima do aceitável”, aponta. Ele destaca que, apesar de não haver denúncias formais recentes de tortura ou violência sistemática, o quadro geral é de precariedade. “O sistema vive um apagão de estrutura. Reformas atrasadas, falta de material, de verbas, de insumos. O que fazemos é complementar o que o Estado deveria garantir. Já compramos bebedouros, televisores e até testes de tuberculose com verba do Conselho”, afirma Toniolo.
As denúncias locais dialogam com o que foi exposto em audiência pública na Assembleia Legislativa do Paraná, em março de 2025, com a presença de familiares de detentos. Entre os principais relatos no Estado estavam: marmitas com presença de larvas, presos dormindo no chão, falta de água potável, ausência de atendimento médico, longos períodos sem banhos de sol, repressão a denúncias, maus-tratos e violência psicológica. O sistema, segundo os próprios familiares, continua funcionando à margem da legalidade, mesmo após decisões judiciais e recomendações de órgãos internacionais.
O Plano Pena Justa propõe, entre outras ações, a revisão automática de prisões preventivas, o fortalecimento das audiências de custódia, a integração de sistemas de dados judiciais e penitenciários e a valorização da atuação da Defensoria Pública. Para a execução do Plano, uma das principais metas é usar o sistema penal como última instância, preservando a liberdade como regra e a prisão como exceção.
Mas, como ressalta Toniolo, “construir cadeia não dá voto”. E enquanto o tema permanecer como tabu, sua prioridade institucional seguirá limitada. “A sociedade não quer ouvir falar de presos. Mas se não cuidarmos do sistema, ele vai continuar produzindo violência”, conclui.
Reportagem: Laura Urbano
Foto: Eder Carlos
Edição e Publicação: Loren Leuch, Ana Beatriz, Eduarda Macedo
Supervisão de produção: Manoel Moabis e Aline Rios