Saúde na rua: como Ponta Grossa atende pessoas em situação de vulnerabilidade
Mais de 200 pessoas estão em situação de rua em Ponta Grossa. Para elas, o acesso ao sistema de saúde é marcado pelo auxílio da assistência social, que atua como ponte entre os atendimentos emergenciais e a rede de serviços públicos, articulando desde o primeiro acolhimento até encaminhamentos para unidades básicas, hospitais e instituições de apoio. A reportagem acompanhou a rotina da equipe do Consultório na Rua (eCR).
O ponto de partida foi a Unidade de Saúde Luiz Conrado Mansani, em Uvaranas. Na última sala do corredor principal, profissionais da saúde e da assistência social se reuniam para planejar o atendimento do dia. A cena resume o trabalho cotidiano da equipe, que atua diretamente com pessoas em situação de rua em Ponta Grossa, articulando o acesso dessa população aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).
A equipe se reúne toda manhã, composta por assistentes sociais, uma técnica de enfermagem, um dentista residente e um médico terceirizado, além de uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional, que integram a equipe de saúde mental. Em uma das paredes da sala, há um quadro branco dividido em linhas e colunas, que configura um calendário mensal. Neste calendário, estão indicados nomes de pacientes que necessitam de cuidados específicos em dias determinados. Troca de curativos em paciente que passou por cirurgia e aplicação de benzetacil em paciente que apresenta IST (Infecção Sexualmente Transmissível) são alguns dos exemplos presentes no quadro.
Mesmo tendo sido instalado em Ponta Grossa recentemente, o programa Consultório na Rua demonstra contato direto e conhecimento dos profissionais com as pessoas em situação de rua. A equipe as reconhece por nome e debate seus casos. Ao se reunirem no ‘QG’, definem a divisão das equipes e os locais onde farão o atendimento. Quando não há demanda especificada no quadro, há lugares de visita pré-determinados, mas a equipe nem sempre dá conta. Silvana Santi Cavalli, que é assistente social da equipe, explica que no início a equipe conseguia seguir uma regularidade de relação lugar/dia, mas conforme o CR foi ficando conhecido, a demanda foi aumentando e agora é necessário atender mais pessoas.
Ao efetuar uma primeira abordagem, a equipe realiza um cadastro com diversas informações, como: há quanto tempo na rua e qual o motivo, se recebe algum benefício, escolaridade, cor declarada etc. Posteriormente os dados são inseridos no sistema, de modo que possam ser acessados em diferentes momentos e por profissionais da saúde em qualquer localidade da região. Atualmente em Ponta Grossa, há mais de 400 pessoas cadastradas pelo Consultório na Rua.
O Consultório na Rua é uma iniciativa nacional, instituída pela Política Nacional de Atenção Básica do Ministério da Saúde, em 2012. Em Ponta Grossa, foi instalado em dezembro de 2024, depois de um ano de ações mensais e posteriormente semanais, considerando o aumento da demanda constante. A psicóloga e coordenadora da iniciativa no âmbito local, Patrícia Valenga, explica que a equipe ponta-grossense foi reconhecida pelo Governo Federal recentemente. “O Consultório na Rua foi credenciado, recebendo recursos federais do Ministério da Saúde, no dia 28 de abril deste ano”, explica. No início, a equipe era formada por funcionários públicos do município, realocados para a eCR. Atualmente a equipe é de modalidade III, pois passou a contar também com profissionais da medicina e odontologia.
Depois de definir quais serão os locais de atendimento, os profissionais se dividem entre si, e a equipe se dirige ao bairro Sabará numa “busca ativa”. O termo frequentemente usado pela eCR significa sair pela cidade, procurando por pessoas que necessitam de atendimento de saúde.
Na busca ativa da manhã do dia 16 de setembro, a equipe se dirige à passarela da Avenida Souza Naves, na entrada da cidade. Embaixo dela, localizam-se três homens que aparentam estar em situação de rua. Dois deles já são conhecidos pela equipe, que passa a conversar para entender a situação e se eles necessitam de algum encaminhamento para outras instituições como CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas) ou UBS (Unidade Básica de Saúde).
O terceiro homem presente é um personagem desconhecido pela eCR. As profissionais conversam para buscar informações e compreender qual é a sua situação e se ele necessita de ajuda. Entretanto, a comunicação não é eficiente. O homem se encontra intoxicado (termo utilizado pela equipe para indicar pacientes que estão sob o efeito de substâncias) e incapaz de se expressar. As profissionais conseguem acesso ao nome do senhor, que porta seu documento de identidade, mas nada além disso. Os outros dois homens que estão ali não sabem muitas informações sobre ele, somente que ele tem um irmão e que mora na região. Com essas informações, a equipe parte para uma unidade de saúde do bairro, para saber se ele já foi atendido no local e se existem informações sobre ele. Pela escassez de informações, há uma dificuldade por parte dos profissionais da UBS em identificá-lo, mas é possível descobrir seu endereço.
Com a informação em mãos, a eCR sai em busca deste endereço. Até encontrá-lo, foi necessário perguntar para a vizinhança. Ao chegar na casa indicada pelas profissionais da UBS, a equipe passa a conversar com a família para entender qual a situação do sujeito. A partir do relato de sua irmã, descobre que o homem reside com ela, mas que sofre com alcoolismo e com frequência sai de casa e demora a voltar. A partir da confirmação de que o homem é assistido, a eCR considera o caso encerrado, uma vez que não está mais no seu alcance de atuação.
Casos mais graves, em que o atendimento primário do Consultório na Rua não é suficiente, os pacientes são encaminhados para as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) ou para o Hospital Universitário Regional dos Campos Gerais (HU), que atende três regionais de saúde, 3ª (Ponta Grossa), 21ª (Telêmaco Borba) e 4ª (Irati), atende 29 municípios. Inês Chuy Lopes é Assistente Social do HU e explica que constantemente o hospital atende pessoas em situação de rua. Elas têm acesso ao atendimento do regional via emergência (SAMU/SIATE), encaminhamentos do Consultório na Rua e casos de violência sexual — que são de atendimemto obrigatório em toda instituição de saúde. Ainda de acordo com Inês, o principal desafio nesse atendimento é o destino do paciente após a alta hospitalar, já que ele tem o direito de escolher para onde deseja ir. A assistência social tenta estabelecer contato com familiares, mas muitas vezes encontra resistência ou desgaste da família.
A situação se agrava quando o paciente apresenta sequelas, como amputações ou condição de acamado, sem ter família ou condições de retornar às ruas. Nessas circunstâncias, especialmente no chamado “lapso temporal” da assistência social, como explica Inês, composto por adultos entre 18 e 60 anos, faixa etária desassistida por instituições de acolhimento, uma vez que não são mais adolescentes, mas ainda não são idosos. Nesses casos ocorre o chamado internamento social: pessoas que já têm condições médicas de alta, mas permanecem internadas por falta de alternativas. Busca-se acionar o Ministério Público e secretarias de saúde para encontrar locais de acolhimento e viabilizar a continuidade do cuidado, mas nem sempre é um processo rápido.
Segundo informações do Polos de Cidadania da UFMG, de 2025, a maior parte é composta por homens entre 18 e 55 anos. Os problemas de saúde mais recorrentes são Infecções Sexualmente Transmissíveis, feridas de brigas, complicações ligadas ao uso de álcool e drogas e casos de tuberculose, cujo tratamento é dificultado pela falta de locais adequados e pela necessidade de continuidade.
A assistente social Rose Christóforo tem anos de experiência no Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua e atualmente trabalha na abordagem social, encaminhando essas pessoas às instituições de apoio, muitas vezes a partir de denúncias ou do deslocamento até locais já conhecidos.
No entanto, o maior obstáculo é a resistência dos próprios indivíduos em aceitar ajuda ou permanecer em abrigos, o que se soma ao desafio do vício, marcado pela instabilidade entre o uso e a sobriedade. Além da dependência química, a principal causa apontada por Rose para a permanência nas ruas é a desestruturação familiar, agravada pela vergonha que muitos sentem em buscar acolhimento.
Reportagem: Maria Vitória Carollo
Foto: Maria Vitória Carollo
Edição e Publicação: Betania Ramos e Joyce Clara
Supervisão de produção: Manoel Moabis e Aline Rios


