Um crucifixo sob a camisa e um coração de ouro no peito

Um crucifixo sob a camisa e um coração de ouro no peito

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Ourives a mais de 30 anos, Roberto Machado nos conta o segredo para lidar com preciosidades da vida

Desde a década de 1970 há a teoria de que boa parte do ouro presente em nosso planeta é oriundo de uma chuva de meteoritos ocorrida a mais de 4,2 bilhões de anos atrás. Tal material extraterrestre, junto de outros minerais, já foram responsáveis por tantos conflitos, guerras, mudanças em hierarquias de poder que seu valor é semântica e historicamente indissociável de nossa percepção de preciosidade e identidade. “Cada jóia tem uma história”, divaga o ourives Roberto Machado de 57 anos, expoente de um ofício tão antigo quanto nossa percepção do valor de tais objetos. Valor este que não existiria se não fosse imputado por nós e que figura como um avatar do que nos é caro. Algo que Machado dedicou a vida a preservar e reparar.

Nossa entrevista começou com um remarque de duas horas. Um cliente de súbito requisitou uma visita técnica que a idoneidade do ourives de mais de três décadas de experiência não poderia recusar. A sala de trabalho de Machado fica ao fundo do salão de beleza de sua esposa e se revela um quarto de 3 metros quadrados que a princípio esconde a opulência da experiência de seu mestre. Na parte de fora, descendo uma pequena escada, vejo uma laje que Machado transformou em uma mini oficina de soldagem. Estão lá os cilindros de gás, aparelhos de solda, maçaricos… E uma cuia de chimarrão ao lado de sua bomba.
Oriundo do Rio Grande do Sul e residente na cidade também há mais de trinta anos, Roberto me recebe com a simpatia reservada de quem moveu se não montanhas, algumas pedras para conseguir alocar a entrevista. O bordô gasto de sua camisa realça o crucifixo de ouro que pende sobre sua corrente e cria uma combinação de brilhos com a aliança robusta e cravejada de pequenas pedrinhas em sua mão esquerda. Um contraste que revela instintivamente o convívio entre simplicidade e o bom gosto do profissional.

O interesse pelo ofício iniciou na juventude quando um amigo do pai, ourives experiente, acolheu Roberto e mais quatro rapazes com aprendizes. “Na época era o único jeito de começar, já que ninguém era o filho do dono de joalheria” conta com certo humor. Da turma, apenas ele vingou dentro do ramo enquanto outros partiram para áreas como a da música ou típicos de escritório. Nesse momento uma música alta advém da vizinhança, é o horário de início de trabalhos de uma academia de pole dance ao lado do salão/oficina.

Após alguns anos trabalhando como empregado, Machado conseguiu abrir a própria loja, a “Elo de Ouro”, localizada na rua General Carneiro. Mesmo com a rotina não possuindo horários fixos e o mantra do “faço o que quero” oculte certos percalços, ele se orgulha de não ser mandado como nos tempos de celetista. “Os patrões sempre tentavam tirar vantagem. Você é o melhor até aparecer alguém que pode aumentar os lucros dele”. O que ele diz ser uma estratégia ruim, já que além de desmotivar os funcionários, aliena os clientes do processo por este se tornar muito impessoal e antipático devido ao teor naturalmente dispendioso associado ao ofício.

Tal apreço pela relação de respeito e atenciosidade com o cliente é a fundação da ética de trabalho do ourives, além de ser seu diferencial em um mundo em que opções on-line de compra e venda de jóias são a regra. “O cuidado que eu tenho de ver os detalhes de cada joia e identificar possíveis fragilidades não existe quando se compra on line e com garantias que mal cobrem o tempo gasto com o frete”- como é o caso de algumas plataformas como o Aliexpress.

Roberto conta que tal postura a base da integração do cliente dentro a respeto do trabalho é o que cativa e fideliza aqueles que confiam em suas habilidades. “Já teve o caso de eu fazer umas 12 alianças para a mesma família da região metropolitana de Ponta Grossa”. Ele conta que muitas das pessoas que o procuram, em especial as de cidades mais interioranas, sempre são curiosas quanto ao processo, detalhes do ofício e equipamentos. “Normalmente eles sempre veem a família inteira. Essa atenção e zelo que eu dou sempre volta para mim, pois ou eles me procuram de volta ou indicam para os conhecidos”.

Machado comenta que a dedicação ao trabalho exige muita concentração, algo que, dependendo da peça e da pedida, a concentração lhe obriga a prender a respiração. O artesão especialista em alianças e anéis, orgulha-se de manter essa postura de compromisso e de nunca dar um salto maior que as pernas, já que isso favorece trabalhos apressados e de menos qualidade. “Uma vez uma médica da que iria se casar me trouxe uma corrente para consertar. Era um presente de sua avó e já tinha levado a outros lugares em que o serviço não foi bem feito. Perguntou se eu conseguiria fazer em três dias. É um serviço que eu não pegaria se não tivesse a certeza de conseguir entregar”, conta o ourives esboçando um sorriso ao lembrar de como a noiva ficou surpresa com a agilidade e a qualidade do serviço. “A corrente lembrou ela de quando a ganhou da avó. Como eu disse antes, toda jóia tem uma historia e traz um valor único para o dono ou dona.”

O celular de Roberto toca pela primeira vez na conversa. Ele pede cinco minutos, conversa com um cliente e volta à entrevista. Com tanto contato com noivos, pedidos de casamento e matrimônios que tiveram sua participação e um casamento de 33 anos com a mesma esposa, perguntou a ele qual é a dica que passaria aos mais jovens. O ourives comenta sobre como a vida lhe ensinou a apreciar tudo que difere de si, a reforçar a virtude da paciência e também revela um pouco sobre os benefícios de uma bem vinda nesciência tática. “Não dá pra ligar pra tudo. Você tem que se fazer de surdo algumas vezes”, ele sorri e complementa: “Se todo mundo fosse igual a gente, seria uma porcaria. Seria tudo muito chato, sem personalidade nenhuma” continua no bom humor.

A entrevista novamente é interrompida por um cliente, um homem na casa dos 55 passados de mais de 1,85 e calvo, que entra na loja para pedir um remendo em um anel solitário da esposa. Em cinco minutos de conversa, Machado lhe explica o procedimento necessário e o homem sai da loja deixando a peça. Machado volta à entrevista refletindo “Incrível como pra eles sempre tudo é muito simples ‘Você puxa aqui, remenda ali…”’, tal quebra gelo nos inspira sorrisos e eu volto às questões preparadas em meu caderninho.

A conversa desemboca em um dos temas mais caros a Roberto, sua fé.

Sobrevivente a uma pandemia que lhe encareceu os materiais que que usa, açém de cercear seu capital de giro – ainda que quando fale dos clientes se limite a expressar que “para quem tem dinheiro, nunca há crise de verdade”, sabedoria valiosa vinda de alguém que mexe com jóias todos os dias- , e principalmente; da perda do netinho João Miguel de dois anos e meio que faleceu no último mês de dezembro por conta de uma infecção hospitalar durante o tratamento de complicações no fígado, ele conta que “apenas a fé de que as coisas podem mudar é que nos movem a realmente ir atrás das mudanças”. Algo que ele aplica no trabalho, no casamento e também para a política, que acompanha através da “Voz do Brasil”, o mais completo jor… Enquanto me mostra a foto de João Miguel no celular sua voz embarga. “Ele veio como um anjo e foi como um anjo” comenta enquanto menciona a esperteza e serenidade do falecido netinho.

Mas o tônus de vida lhe enrubesce novamente ao mencionar que sua filha mais velha conseguiu engravidar novamente e que segue sua vida enquanto advogada formada e funcionária do fórum municipal. Também menciona com leveza o desejo da mais nova, de 19 anos, de tentar o vestibular de medicina na cidade.

A entrevista se encerra enquanto outros dois clientes aguardam na porta do salão o término das fotos para a matéria. Me despeço de Machado lembrando de uma música clássica de New Young de 1972 que, de certa forma o sintetiza em cada parte que conheci dele naquela tarde de primeiro de agosto.

“I want to live. I want to give. I’ve been a miner for a heart of gold. It’s these expressions, I never give. That keep me searching for a heart of gold. And I’m getting old. Keep me searching for a heart of gold”. Em tradução livre: “Eu quero viver. Eu quero prover. Estou sendo um minerador a procura de um coração de ouro. São essas expressões a que nunca cedo que me mantém procurando um coração de ouro. E estou ficando velho. E continuando a procura por um coração de ouro.”

 

 

Ficha técnica:

Reportagem e infográfico: Yuri A.F. Marcinik

Edição e Publicação: Yuri A.F. Marcinik

Supervisão de produção: Marcos Zibordi

Supervisão de publicação: Candida de Oliveira e Muriel E. P. Amaral


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