Universidade como espaço de identificação de todes*

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Contato com a diversidade e estudos sobre gênero e sexualidade auxiliam no processo de autoidentificação de pessoas não-binárias

Esta reportagem apresenta a história de duas pessoas não-binárias (NB), que iniciaram os primeiros movimentos para a autoidentificação durante a graduação. Por isso não se espante com os pronomes utilizados nesta matéria. São elus: Ádria e Nadjagley. Nos dois casos, o ambiente universitário oportunizou o contato, por meio de grupos de pesquisa e movimento estudantil, com diversos estudos e comunidades que tratam sobre sexualidade e gênero, os quais a partir de conversas contribuíram para a autoidentificação delus. Algo mais fluído.

No caso de Ádria Gelinski, 33 anos, bacharel em Geografia e doutorande pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), a identificação e expressão verbal como NB aconteceu há cerca de um ano. Dry, como gosta de ser chamade, teve contato com a comunidade LGBTQIAP+ durante o terceiro ano de graduação, ao participar do Grupos de Estudos Territoriais (GETE), que  realiza pesquisas sobre temas e aspectos  marginalizados na ciência geográfica brasileira. 

Dry entrou no grupo para estudar religiosidade e fez iniciação científica nesta área, sob orientação de uma geógrafa feminista. Devido à pesquisa, passou a se relacionar com outros grupos, como o Renascer, em que conheceu outras feministas e pessoas LGBTQIAP+. “Não poderia imaginar a potencialidade da minha pesquisa. Até então, não tinha tido contato com mulheres trans e travestis, principalmente pelo estigma passado pelos discursos da igreja que costumava ir”, conta.

Na época, Dry participava de uma igreja evangélica, que começou a frequentar aos 14 anos, em função de um time de futsal feminino. Elu conta que sofria pressões da igreja sobre seu comportamento, o que ficou mais nítido na pesquisa. “Atendi ao que era colocado por muito tempo, mesmo não me sentindo confortável. Seguia à risca os ensinamentos, quanto ao que era esperado de um corpo considerado feminino”, analisa. Dry permaneceu nos cultos até o último ano da graduação, pois seu TCC era referente à religião, porém já não seguia as normas religiosas. Em 2014, ao concluir a graduação, saiu da igreja e em 2015 ajudou a fundar o coletivo feminista Resistência Amapo, que atuou em Ponta Grossa por dois anos. 

No mesmo período, fez mestrado também em Geografia e teve como objeto de estudo igrejas inclusivas LGBTQIAP +. Dry conta que esse foi um dos momentos mais importantes para o processo de autoidentificação, já que havia saído da igreja evangélica. No programa de pós-graduação, obteve a oportunidade de conhecer pessoas que passaram pela mesma situação. Lá, Ádria deu os primeiros passos para se identificar como uma pessoa não hétero, permitindo se conhecer de outras formas. “Já entendia que tinha alguma coisa, só não sabia direito o que era e não queria lidar com aquilo, o que me gerava muita angústia”, ressalta. 

Apenas em 2020, Dry conheceu o termo NB a partir de algumas leituras para a tese de doutorado em Geografia, mantendo a linha de pesquisa sobre religião. Durante as entrevistas realizadas, teve contato com outras pessoas que se identificam desta forma. Na pandemia, começou a olhar para si e se incomodar com o que via. “Sempre tinham algumas dúvidas e nada se encaixava”. Então, compreendeu porque sente angústia desde aquele período. Há apenas um ano, começou a verbalizar a não binariedade, seguindo o processo de autoconhecimento. Dry ressalta no áudio abaixo sobre a existência de pessoas NB.

Embora esse processo tenha acontecido no meio universitário, nem tudo são flores. Ainda que a universidade possibilite, em alguma medida, um olhar mais voltado à diversidade e acolhimento aos diferentes identidades de pessoas, não se pode generalizar. A autoidentificação de Dry aconteceu devido aos contatos que teve no ambiente acadêmico, mas elu conta que sofreu discriminação mesmo assim, inclusive de professores. 

Nem todas as pessoas NB passam pela experiência negativa no ambiente universitário. É o caso de Nadjagley de Oliveira, 26 anos, gerente de vendas, também pessoa NB que se identificou como tal durante a graduação. Elu é formade em Educação Física pela Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro), em Irati, e também iniciou Serviço Social na mesma instituição, em Guarapuava, mas não finalizou. Ao começar a primeira graduação teve dúvidas quanto à sexualidade. Primeiro se entendia como mulher hétero, depois como mulher lésbica e, agora, se compreende como pessoa NB, que pode se relacionar com os mais diversos gêneros. 

Elu relata que quando iniciou a graduação, conheceu mulheres lésbicas que fizeram questionar sua própria sexualidade e passou a se relacionar com mulheres. “Quando me identifiquei como lésbica, mudei todo meu guarda roupa para expressar a minha posição, era quase uma cobrança, as pessoas esperavam que eu fosse assim. Por mais que fizesse sentido no momento, por vezes eu não me sentia contemplade no meu próprio discurso”, comenta. 

Em 2019, na segunda graduação, conheceu a música “Elevação Mental” de Triz, cantore NB. A letra da música trata sobre a não-binariedade e promoveu inquietações quanto ao gênero de Nadjagley. Elu integrou o Movimento Estudantil de Serviço Social e também participou de coletivos femininos, em que conheceu pessoas trans. “Em meio a isso, eu tive muito contato com pessoas trans, mas eu mantive essa questão de lado, estava focade em outras coisas. E ter que explicar para todo mundo essas coisas é muito complicado, como eu explico algo que nem eu entendo ainda?”, questiona. 

Nadjagley fala de suas leituras sobre feminismo, mulheres transexuais, mas revela que não se identificava com essas referências, o que gerava confusão em sua cabeça. Um dia, foi pesquisar sobre gênero fluído, que é uma identidade que transita entre gêneros ao longo do tempo, funcionando com um espectro que flui em toda a extensão dos diferentes gêneros. Aos poucos, passou a entender sobre a não-binariedade. Em razão de crises de ansiedade e de pânico durante a pandemia de COVID-19, buscou atendimento psicológico e optou por uma profissional trans NB. A terapia acalmava Nadjagley e organizava sua cabeça e a partir deste acompanhamento, passou a se identificar com a não-binariedade. Ouça Nadjagley falando sobre o processo de reconhecimento como pessoa transexual.

*Na linguagem neutra o E e o U são utilizados para substituir a norma binária de identificação.

 

Ficha Técnica

Reportagem: Ana Moraes 

Áudios/ilustração: Ana Moraes

Edição e Publicação: Vinicius Sampaio

Supervisão de produção: Luiza Carolina dos Santos

Supervisão de publicação: Cândida de Oliveira e Muriel E.P. Amaral


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