Wanessa de Geus não cantou na Magic
As dificuldades da comunidade LGBT+ na vida noturna de Ponta Grossa no início dos anos 2000
Wanessa de Geus estava em frente ao espelho, eram os últimos retoques na maquiagem. Poderia ser qualquer final de semana numa noite dos anos 2000. Wanessa queria sair para as ruas de Ponta Grossa se divertir com seus amigos. Naquela noite, havia três opções de festa: uma na Magic, na Diesel e outra no Clube Tradição. Esses eram os lugares mais badala dos da cidade no começo dos anos 2000.
A Diesel poderia ser o combustível da noite para Wanessa, porém o casarão era o ponto de encontro dos playboys da cidade. O preço da entrada e das bebidas fugia do orçamento dela naquela noite. Já o Clube Tradição era sempre o mesmo disco. Tocava mais sertanejo e ela não queria sofrer com os modões. O destino para Wanessa e seus amigos já estava certo: “Eu vou para a Magic!”, pensou a jovem. Não havia como não ir, afinal, era o lugar mais famoso entre os três.
Enquanto passava sombra nos olhos, a mulher ligou o aparelho de som. O CD (Compact Disc) começou a rodar a 180 rotações por minuto. A música que encheu o ambiente era do álbum de estreia da cantora Wanessa Camargo. Assim que começou a primeira fai xa, “O amor não deixa”, o telefone tocou, e segundos depois uma voz masculina disse: “Wanessa, acorda”. No entanto, quem acordou não foi Wanessa Camargo, como no clipe desta música. Muito menos Wanessa de Geus. Quem voltou para a realidade foi Gerson Duda, um rapaz de 20 anos.
A mulher que se maquiava não estava ali. Ela não existia no começo dos anos 2000. Só existia Gerson, um homem gay que ainda estava trancado a sete chaves no armário. Sua personagem drag, Wanessa de Geus, só existia no mundo da imaginação. O sonho de uma personagem inspirada em sua ídola Wanessa Ca margo não poderia acontecer naquela noite. Depois do choque de realidade, ele terminou de pentear os cabelos e saiu com os amigos. O destino não mudou. Naque la noite iria para a Magic.
Saudosismo da Magic
Ao chegar lá, Gerson percebeu que havia pessoas LGBT+. Inclusive, alguns dos gerentes e pro moters eram da comunidade, como o jornalista e em preendedor Léo Pasetti. Essa figura alavancou sua carreira animando as festas na balada, como relata Ronaldo Nobres, que também trabalhou lá. “Havia LGBT+ na Magic. Inclusive, o promoter antes de mim era o Léo Pasetti. Então, ali abriu um pouco o leque para os gays frequentarem”, relembra Ronaldo.
A trajetória de Pasetti na balada, juntamente com a saudade das grandes festas, movimentou a cria ção de um grupo no Facebook, o MAGIC Geração Léo Pasetti. Este grupo, que inclui Gerson e outros 7,6 mil membros, foi criado em 2021, para que seus integrantes relembrarem os bons tempos vividos no local.
Festa da espuma do preconceito
Não é à toa esse saudosismo, o lugar era acessível para diferentes classes sociais e faixa etárias. Sempre eram feitos saraus que ocorriam das 17h até as 23h. Foi assim que Anderson Pedroso, o rei momo da cidade, começou sua vida noturna. Com 11 anos ele já frequentava a Magic. “A gente falava para os pais que íamos ao cinema, mas na verdade íamos para balada”, afirma Anderson.
Porém, mesmo que existisse um público LGBT+ no local, eles precisavam se esconder para causar um certo ‘respeito’ no local. “Eu nunca sofri pre conceito, mas eu aprendi que se eu respeitasse iam me respeitar pelo ser humano que sou”, conta Anderson.
Desde os 15 anos, Reinaldo Nobres já era ‘magicqueiro de carteirinha’, e por isso se tornou garçom do lugar, até que chegou na gerência do local. Como gerente, Reinaldo precisava deixar o público – majoritariamente heterossexual – satisfeito com as festas. Assim, ele orientava os LGBT+ da balada para ter o mesmo respeito que Anderson havia aprendi do. “Eu tinha contato com travestis e falava respeito aqui dentro. Eu também sou – LGBT+ – , mas primeiramente tenho respeito”, afirma Reinaldo.
Essa ideia de que as pessoas da comunidade LGBT+ precisam esconder o que eram para ter “res peito” predominou até a decadência da Magic, em 2015. Gerson conta que nos últimos anos da balada o preconceito persistia. “Eu fui tirado por dois seguranças por dar um beijo ‘normalzinho’ no meu marido na época”, relata Gerson.
Um lugar seguro
Essa comunidade precisou resistir para poder curtir as noites na cidade. Pela necessidade de lugares específicos, existiram dois bares gays na cidade desde a década de 1990. O Enigma e o 608, dois bares escondi dos para a população em geral da cidade.
Para frequentar, no mínimo você precisava ter contato com alguém que já conhecia o lugar. Gerson Duda chegou a conhecer o Enigma enquanto se aventurava com outros homens e se descobria como gay. “Domingo depois da meia noite eu desbaratinava os ‘piá’ da vila e corria para o Enigma”. Diferente da Magic, nesses bares as noites eram mágicas.
Apesar dos dois serem apenas casarões anti gos, não precisavam de muita estrutura para divertir a noite dos LGBT+. Tanto que o Enigma era um espaço com partes de alvenaria e outra de madeira com cupim, mas já dava para improvisar pistas de danças. O 608, que tinha um pouco mais de espaço, fazia shows de drags queens, concursos de Miss Gay, apresentação de Música Popular Brasileira (MPB) e de strippers masculino e feminino, festas temáticas, além de cômodos para algo mais reservado como os Dark Room.
Esses ambientes auxiliam o desenvolvimento da identidade LGBT+, ainda mais em uma época com poucas referências. Conforme aponta a psicóloga e especialista em atendimento para comunidade queer, Jussara Prado, “Casais cis-hetrossexuais tem um amadurecimento da identidade desde a adolescência. Nós entramos na adolescência sem nos entendermos. Não temos uma rede de amizade LGBT+ para isso”.
Essa identidade é formada pela rede de ami zade entre os pares, um contato presente em bala das, como explica a psicóloga. Justamente por frequentar o Enigma que Gerson pode se entender enquanto homem gay e ter a oportunidade de dar a vida à Wanessa de Geus.
As novas referências
Apesar de Ponta Grossa ser conservadora, a resistência LGBT+ no decorrer dos anos possibilitou um certo progresso da diversidade local. Thaís Boa morte, advogada e conselheira LGBT+, explica que esse progressismo da cidade se deu pelas lutas dos grupos organizados dessa comunidade. “A cidade foi a primeira do Paraná a ter um conselho municipal LGBT+, a primeira a ter uma comissão da diversidade e de gênero da OAB, antes mesmo que Curitiba”, exemplifica Thaís.
Atualmente, Cindy Cindy, drag de Fábio Mendes, luta politicamente em eventos empresariais sobre o preconceito e se tornou a porta voz da Parada Cultural LGBTQIAPN+ dos Campos Gerais, no começo dos anos 2000, ela só teria espaço nas baladas. “A drag queen é sim uma forma de quebrar paradigmas, estereótipos e ser uma porta voz para a comunidade. Eu consigo levar esse personagem para outros públicos que são f ra do meio”, aponta Fábio.
É essa vontade de quebrar preconceitos que fez Leonardo Meira, de 22 anos, criar a Kylie Woul Hill. Uma personagem drag forte, como o nome que ela carrega. Kylie surgiu do amor de Leonardo pelas artes, teatro e também pelo reality show RuPaul’s Drag Race, iniciado em 2009 sobre a arte drag queen estadunidense. “Lembro de um certo dia ver o trailer do Drag Race. Fiquei extremamente curioso para saber o que aquelas pessoas faziam e o porquê daquilo”, relembra.
Leonardo viu mais espaço de representação. Não precisou ter o respeito como era necessário no passado. Para ele é natural beijar outros rapazes nas festas sem um segurança expulsar. Inclusive, uma das suas primeiras apresentações como drag queen foi na Parada LGBT dos Campos Gerais, que só começou na cidade em 2018. “Têm muitas pessoas e referências para acompanhar e se espelharem, como cantores, influenciadores, professores e representantes políticos como Erika Hilton e Linda Brasil”, aponta.
Mesmo com certo avanço, o Brasil ainda é o país com maiores taxas de violência e suicídio LGBT+, conforme aponta o Relatório de Mortes Violentas LGBT+ no Brasil, produzido pelo Grupo Gay Bahia. O relatório de 2023 apontou 257 mortes violentas documentadas, sendo uma morte a cada 34 horas.
Reportagem e Fotos: Alex Dolgan
Edição e publicação: Eduarda Guimarães e Juliana Lacerda
Supervisão de produção: Ivan Bomfim e Gabriela Almeida