Escravos dos Campos Gerais na primeira metade do século XIX, a presença e a resistência
A historiografia tem demostrado que a presença e a atuação dos escravos foi significativa no processo de ocupação de várias partes do Sul do Brasil. No início do século XVIII “a instalação de terras de invernada nos Campos Gerais foi levada adiante por proprietários quase sempre absenteístas, em geral comerciantes paulistas que delegavam a prepostos ou a escravos a responsabilidade pela administração das propriedades” (MACHADO, 2008, p.27-28). Sabe-se que nos primeiros anos dos oitocentos, “o escravo era mão-de-obra fundamental nas grandes fazendas, e os proprietários dos Campos Gerais eram geralmente senhores de escravarias maiores do que os das terras curitibanas” (MACHADO, 2008, p.30).
De fato, nas primeiras décadas do século XIX a região abrigava um contingente significativo de escravos. Em 1816 era o território do Paraná com maior percentual de cativos. Enquanto o litoral e o planalto curitibano apresentavam índices de 18,5% e 12,4% da população cativa, respectivamente, nos Campos Gerais o índice somava mais de 20% (WESTPHALEN, 1997, p.35). Tal proporção manteve-se durante toda primeira metade daquele século.
Na região, a população escrava constituía-se majoritariamente de crioulos (escravos nascidos no Brasil). Havia equilíbrio entre os sexos e um grande número de crianças (PORTELA, 2007, p.2). Predominavam os pequenos planteis: “pouco mais de 60% dos escravistas congregavam em suas posses quatro ou menos cativos” (MELO, 2004, p. 20).
Os escravos dos Campos Gerais atuavam em diversos serviços, como o doméstico, a agricultura, a pecuária e outras atividades especializadas. Em 1844, por exemplo, quando faleceu João Carneiro Lobo, seus escravos foram descritos no inventário e, para alguns deles, foram anotadas as ocupações: o cativo Simão desempenhava ofício de roceiro; Manoel era campeiro e João era campeiro e domador. Em outro documento, de 1828, foi anotado que na propriedade de Delfina Carneiro vivia como roceiro e alfaiate o “mulato” João.
A labuta no campo e o cotidiano do cativeiro não impediram os escravos de alimentarem seus sonhos de liberdade. Para isso teceram relações sociais e criaram estratégias para que em algum momento tais desejos se transformassem em realidade. Em determinados momentos, quando a alforria parecia distante, alguns partiam para a insubordinação, para a rebelião ou fugiam dos domínios senhoriais. Quando o documento para obtenção da manumissão parecia distante, os escravos forjavam sua liberdade por meio das fugas.
Este foi o caso de Damásia que, na tentativa de livrar-se dos domínios de sua senhora, Ignacia Maria, lançou-se à fuga na noite do dia 12 para o dia 13 de abril de 1850. Na ocasião a cativa estava com aproximadamente 20 anos e possuía pelo menos um filho, o pequeno João, que acompanhou a mãe naquela noite. Quando a escrava deixou a casa de sua senhora, conforme registro dos autos do seu interrogatório “tomou os caminhos dos matos na direção por onde seguia o rio Iapó e emaranhou-se mata adentro e por lá ficou com o filho João”. Talvez ela buscasse alcançar os caminhos que levassem seu rebento para algum quilombo, tendo em vista as notícias que circulavam a respeito da existência desses agrupamentos naquela região, sobretudo na direção do Assungui. No entanto, sobreviver como escrava fugitiva numa sociedade escravista, naquela época, não era fácil e a possibilidade de captura era grande.
A fuga de Damásia durou apenas três dias. Quando o sonho de sua liberdade parecia selado, já distante da casa de sua ‘ex’-senhora, o seu filho foi picado por uma cobra, o que modificou totalmente os planos da fuga. Era 16 de abril quando Damásia retornou à casa de sua senhora. Esta não hesitou em informar às autoridades locais sobre o retorno da cativa, considerada “fujona”. Além disso, Ignacia Maria exigiu que a escrava, perante os membros da Justiça, esclarecesse a morte da criança. Corriam suspeitas de que a cativa tivesse assassinado o próprio filho.
Após seis meses da morte do menino, Damásia foi convocada ao interrogatório judicial, em 16 de outubro do ano de 1850. Nessa data o Juiz Municipal Antonio Nunes Correa declarou que a escrava não era a autora da morte da criança, pois a mesma “sofria de sentimentos de humanidade”. Para a Justiça encerrava-se o caso da morte do pequeno João.
A vida de Damásia, somada a de tantos outros escravos do seu tempo, é especialmente instrutiva aos historiadores. Ela nos sugere pensar contextos mais amplos, sobretudo os contextos das experiências de resistência dos cativos. No caso específico, na região dos Campos Gerais, fica evidente a vontade de uma escrava em demonstrar seu descontentamento com o domínio senhorial, colocando tal propósito em prática.
A história da conquista da liberdade na região é página a ser escrita. Nela, o protagonismo dos cativos que demonstraram suas determinações de emancipação, de inúmeras formas, sendo a fuga uma das mais corriqueiras, certamente terá papel de destaque.
FONTES
Autos do Interrogatório da escrava Damásia. 1850. Casa da Cultura Emília Erichsen. Castro (PR). Fuga escrava.
Inventário de João Carneiro Lobo (1844). Museu do Tropeiro. Castro (PR)
Inventário de Delfina Carneiro (1828). Museu do Tropeiro. Castro (PR).
REFERÊNCIAS
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
MELO, Kátia Andréia Vieira de. Comportamentos e práticas familiares nos domicílios escravistas de Castro (1824-1835) segundo as listas nominativas de habitantes. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná – UFPR. Curitiba, 2004.
WESTPHALEN, Cecília Maria. Afinal, existiu ou não regime escravo no Paraná? In: Revista da SBPH, nº 13: 25-63, 1997.
Autora: Mariani Bandeira Cruz Oliveira
Bacharel em História UEPG, 2010; Doutoranda em História (UFRGS)
Ano: 2019
Revisão: 2020