Na valsa da morte, o rito é essencial para todos
Estética e ritualística funerária sempre atuam como mediadora entre a vida e a morte
Ao redor do globo, ritos funerários sempre estão ligados como símbolos de transição em uma viagem, seja para os vivos com o luto ou para os que fizeram a passagem. Na mitologia grega, a passagem ganha contornos didáticos na figura de Caronte, o barqueiro do submundo, encarregado de levar os recém mortos para o julgamento final. Possivelmente, o primeiro agente funerário que temos conhecimento.
A tribo dos Bororós entende o processo como um rito de passagem de gerações de forma empática com o legado do morto. Na tribo do Mato Grosso, a morte é seguida de um primeiro enterro e de uma exumação, que deixa o corpo em uma cova rasa, em destaque na aldeia. A entidade Bope – delegada das transformações primordiais de nascimento, puberdade e morte – toma o corpo de um animal e este deve ser caçado por um menino da aldeia, que durante a caça é tratado como da mesma posição do falecido para simbolizar sua luta contra a aniquilação. Quando a caçada é concluída, o menino passa a ser o homem de voz na aldeia. O morto possui os ossos envolvidos por acessórios em um novo enterro e se torna parte da natureza, vencendo a morte.
A relação entre os núcleos de memória, identidade, paz e luto são inerentes dentro de um rito funerário. A organização situa a imagem de alguém outrora vivo e caracterizado de forma específica em roupas e maquiagem em um ponto de fácil identificação e contemplação pelos demais durante 24 horas, é mordaz na estética. O termo, de origem grega – aisthesis: conhecimento sensível – foi pensado por Platão como forma de aprender pelos sentidos e de associar o bom ao belo. Porém, o que caracteriza essa beleza e sua qualidade para quem participa? Como ele une o protagonista do ritual com os presentes? Perguntas que, uma pandemia e mais de quase 700 mil mortos no Brasil (OMS), são quase que espasmos de meu inconsciente curioso e compadecido.
Começo a expurgar esses espasmos conversando com o agente funerário Victor Sweeney. Intrigantemente, com exceção de alguns detalhes, descobri que o rito da morte é uma necessidade universal. O agente participou de quatro quadros da revista online Wired – com mais de meio milhão de visualizações no Youtube, onde conheci seu trabalho. Morador do estado de Minnesota, Estados Unidos, ele atua há mais de 12 anos no ramo e comenta sobre o poder que os elementos estéticos possuem em um ritual funerário.
A estética tem o papel de fornecer paz visual ao ritual já que, muitas vezes, as pessoas em seus últimos momentos, estão com olhos e bocas abertos; traumatizante. “Ver, por exemplo, o seu pai ou mãe vestidos como eles costumavam se vestir, com uma postura pacífica e intacta, em um ambiente seguro, como em casa ou em uma capela, auxilia na decorrência do luto enquanto a realidade da perda se instaura progressivamente”, explica Sweeney.
Em segunda instância, o ritual funerário e sua estética são essenciais aos vivo, que não podem ser ignorados. Sweeney comenta que, observando o costume comum de guardar para si os sentimentos, não são raras as demonstrações emocionais extremas. “Na minha experiência, é sempre melhor demonstrar e converter expressões em luto do que deixar os sentimentos engarrafados. Se torna um peso ainda maior para carregar durante um evento que já é naturalmente denso em termos de demanda emocional. Um velório é um ritual para se curar, não adoecer mais”.
Pergunto a Sweeney como ele se vê enquanto mediador entre a paz da partida para os falecidos e o consolo dos enlutados. A resposta me faz pensar que poucas profissões dependem tanto da empatia como a dos agentes funerários. “A habilidade de servir adequadamente a uma família está diretamente relacionada ao quanto consigo me pôr a parte de mim mesmo. Seja os escutando, resolvendo uma necessidade ou em ações simples, como vindo ao leito de um amado que faleceu às três da manhã”. Sweeney explica que se demonstra compaixão com o falecido, os familiares também se sentem acolhidos e podem embarcar na jornada do luto com mais paz.
O rito dentro da psique
A conversa com Sweeney me instigou a adentrar no campo das implicações subjetivas, efeitos simbólicos e contradições da psique humana atrelados ao tema. O que tal contato ritualizado com a morte nos desperta? A potência ritualística de um velório e suas implicações estéticas sob a consciência só tomaram forma quando a psicóloga Fernanda Bahena Soares organizou o tema em minha mente.
A visão da morte, por vezes, é reprimida em nosso inconsciente por ser compreendida de modo negativo. Mas, o acontecimento é capaz de transformar o indivíduo. “Essa mudança sugere alguns comportamentos dos indivíduos para reequilibrar conflitos e seus efeitos no seu mundo externo e interno, como quando um ente próximo vem a falecer”.
A psicóloga comenta que muitas vezes o ritual se torna uma forma de expressar sentimentos e ideias que não acham meios entre os verbais já que, como todo o tempo após a morte de um ente é valioso para quem o perdeu, um funeral pode se tornar a última chance de oferecer um tributo digno. “Toda a elaboração desse processo é significativa para a família e amigos. Tudo aquilo que compõe o rito tem valor simbólico e muitas das vezes os quais não conseguem ser expressados verbalmente”.
Isso ocorre muitas vezes, pois a perda de alguém implica, além do início do processo de luto, reorganização do que a pessoa entendia como sua personalidade e função social. Ela aponta para a carga simbólica do ritual, a tormenta de ressignificação dos sentidos e sinaliza para mudanças que irão ocorrer. “Se houve a perda de um pai, por exemplo, é preciso ressignificar todo o papel e função de um pai para o filho e de um filho para o pai”.
O que Fernanda fala que pode vir de uma participação ativa dentro da elaboração estética de um funeral. “Todo esse processo demanda determinado tempo combinado com diversas emoções em conflito. Mas, ele se inicia desde a escolha das flores, do caixão, da maquiagem e vai até a preparação de um almoço meses depois com um ingrediente que lembra o falecido”, aponta.
Soares explica que a estética empregada suaviza a partida e faz da passagem do falecido um modo de encarar o real com elementos familiares. “Prezar pela aparência para que se pareça o mais próximo possível de quando vivo, é tentar buscar por uma feição amigável que possa representar um estado de paz. Afinal, será uma das últimas imagens impressas na psique dos familiares e amigos”, afirma a psicóloga.
Voltando ao mito de Caronte, é revelador ver como a jornada mutante do luto, via a estética funerária, encontra paralelos com a própria jornada dos recém mortos. Pois o percurso pelo rio Aqueronte em direção ao tribunal do juízo final, presidido pelos magistrados Éaco, Radamante e Minos – com a supervisão do próprio Hades, senhor do submundo – era povoado por visões conflitantes dos horizontes do Tártaro – inferno Grego – dos Campos Asfódelos – destino das almas medíocres – e os Campos Elíseos – paraíso – logo atrás do tribunal. Essas visões amplificafvm a ansiedade dos passageiros pela visão das almas perdidas condenadas à eterna deriva por não se encaixarem em nenhum dos três destinos. Contudo, a viagem era segura, tranquila e suave devido à maestria do barqueiro, que proporciona aos recém falecidos momentos de reflexão/lamentação sobre sua vida antes do desígnio final. Um processo difícil, mas amenizado pelos poderes dos ritos e pela paz transformadora que a estética oferece.
Matéria dedicada a todos que passaram pelo Caminho de Caronte nos últimos anos.
Ficha Técnica
Reportagem: Yuri A.F. Marcinik
Edição e Publicação: Cássio Murilo
Supervisão de produção: Muriel E.P. Amaral
Supervisão de publicação: Cândida de Oliveira e Carlos Alberto de Sousa