História da historiografia local/regional (I): O projeto de Frederico Martinho Bahls

História da historiografia local/regional (I): O projeto de Frederico Martinho Bahls

Como toda forma de saber, também a historiografia tem uma história. “A história não existe antes do historiador”, diz Philippe Ariès (1989, p. 223).  Conforme Michel de Certeau (1982, p. 65-119), o discurso historiográfico é produto de um lugar (uma instituição social), uma prática (os métodos, as técnicas de “estabelecimento das fontes”) e uma escrita (um texto, uma narrativa dada a ler).

Pelo que se tem notícia, o primeiro “modelo” de história de Ponta Grossa foi proposto pelo vereador Frederico Martinho Bahls e aprovado unanimemente pela Câmara Municipal, em 1883. Diz o documento:

Indico que a Câmara faça uma História do seu município e fique arquivado, para o futuro que será de muito valor essa descrição começando primeiro o tempo em que isto foi Bairro de Castro, Freguesia, Vila e Cidade as datas de sua criação, distrito de paz, subdelegacia, delegacia, Júri Municipal, Termo e Comarca esta última quando foi suprimida e de novo criada outra; anexação da Palmeira em tempo que foi Vila, e desligado desta e depois anexa outra vez; criação da Freguesia das Conchas; Matriz por quem foi feita e em que época; do mesmo modo a outra [primeira matriz] e Cadeia, Teatro em que tempo, por quem e o tempo em que desabou; criação de uma associação, como seja Irmandade, biblioteca, Maçonaria e a extinção de uma e de outra; dádiva do terreno para a feitura da Freguesia, dádiva a mais importante para a Igreja; primeiro Júri e por quem foi presidido; a primeira Câmara, seus nomes; visita do primeiro Presidente, Imperador e Bispo. Número de fábricas, engenhos de serrar, socar, curtir e seus donos. Tempo em que chegou os colonos, número, e quantos saíram, e os que ficaram; gêneros de exportação e como foi e são exportados; criação de telégrafo, expedição de estradas de ferro para o Mato Grosso, e outras até Castro, os nomes dos engenheiros. Assim como a introdução de animais de raça, qualidade e nomes dos introdutores, ovelhas, muares e qualidade e o motivo da extinção. Saber da plantação do trigo que antigamente exportava e o motivo de se extinguir. Paço da Câmara, 21 de agosto de 1883. Martinho Bahls. Entrando em discussão foi unanimemente aprovada (ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE PONTA GROSSA, 22/8/1883).

A ênfase em datas, nomes próprios e “origens” remete a uma concepção tradicional da história, dita oficial, próxima das elites e dos poderes constituídos. Não obstante, o projeto apresenta uma sinopse, um modelo indicativo de “campos” a serem explorados pela pesquisa e escrita de uma história ainda por fazer; elenca uma série de temas, questões e “objetos” a servirem de orientação ou plano nos campos da história política, eclesiástica, econômica, demográfica, administrativa, dos transportes, da “cultura”, das comunicações, entre outros.

De modo geral, as correntes historiográficas do século XIX tinham em comum a valorização das fontes primárias de informação. Lei tácita dos meios acadêmicos, era necessário ir aos arquivos, selecionar, copiar, provar, ou seja, documentar a pesquisa de modo a compor uma narrativa a mais próxima possível do que “realmente aconteceu” no passado, no caso, desde a origem do município. Nesse sentido, o “modelo Bahls” é bastante “moderno” para o seu tempo e lugar. Em sessões seguintes, o vereador propôs uma heurística dos arquivos que combinasse documentos de origens diversas, escritos e orais, oficiais ou não.

Indico que para se poder fazer o histórico do município, se peça informações à Câmara de Castro o tempo que isto era Bairro e criado Freguesia, ao vigário desta Paróquia o que lhe tocar, ao Barão de Guaraúna, ao Tenente Coronel Manoel Ferreira Ribas, ao Capitão Joaquim Ferreira Pinto, Capitão Cândido Xavier de Almeida e Souza, [ilegível] Pedro da Silva Carvalhais a parte que puder e o que souber e possa esclarecer. Paço da Câmara, 25 de agosto de 1883. Martinho Bahls. Entrando em discussão foi unanimemente aprovada, mandando-se oficiar (ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE PONTA GROSSA, 25/8/1883).

Na primeira reunião de 1884, o vereador indicou mais dois membros para compor a lista de informantes:

O Sr. vereador Bahls indicou verbalmente que se oficiasse ao Sr. Tenente Coronel José Florentino de Sá Bittencourt, e Diogo Dias Batista, pedindo informações para a história deste município. (ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE PONTA GROSSA, 9/1/1884)

Até onde se sabe, o projeto não vingou.

Os Bahls foram a primeira família de imigrantes alemães a estabelecer-se em Ponta Grossa, em 1828. “Conta o notável linhagista [Francisco Negrão] que Martinho Bahls não podendo viver no sertão, estabeleceu-se com uma alfaiataria em Ponta Grossa. Aí constituiu a sua família, vivendo até os 76 anos e sobrevivendo a sua esposa [Marie Louise Axt Bahls], que alcançou a provecta idade de 99 anos” (LEÃO, 1926, vol. 7, p. 66).

Um dos filhos do casal, Frederico Martinho, nascido em 1829, teve uma trajetória marcante de ascensão social, econômica e política. Na trilha do pai, começou a vida profissional como alfaiate, mas alçava voos maiores. Um bom casamento serviu-lhe de catapulta.

“Frederico Martinho Bahls […], nascido em Santo Amaro, casou-se, em 1853, com Ana Perpétua, filha do sargento-mor Miguel da Rocha Ferreira Carvalhais, rico fazendeiro e um dos fundadores da freguesia de Ponta Grossa. Daí, ser a noiva representante de uma das mais influentes e tradicionais famílias campesinas. Sendo assim, não demorou muito e Frederico Bahls estava atuando na política. Em 1855, foi eleito camarista e chegou a Presidente da Câmara, nas eleições de 1860 [e em outras três legislaturas]” (PEDROSO, 2001, p. 29; HOLZMANN, 1969, p.48).

Trata-se de um político que exerceu de fato o poder legislativo e executivo municipal durante vinte e cinco anos. Seguiu também carreira na Guarda Nacional, obtendo a patente de tenente; foi pedreiro e carpinteiro (concluiu a construção da câmara municipal); atuou em projetos de imigração e assentamentos de colonos imigrantes (ocupou, em 1892, o cargo de “encarregado da colonização” no município.)

Morreu em 1902, aos 73 anos, em Ponta Grossa, sem ver realizado o seu projeto de uma história municipal.

Na década de 1880, quando foi proposto e aprovado o projeto de Bahls, as histórias municipais, apesar de raras, não eram uma novidade. No Brasil, essas narrativas aparecem desde o século XVIII colonial. Em 1872, uma provisão de D. Maria I, rainha de Portugal, expedida pelo Conselho Ultramarino, ordenou que todas as câmaras do Brasil “criassem um livro, onde fizessem escrever todos os acontecimentos mais notáveis e dignos de memória, desde o descobrimento das capitanias até ao presente; e os que fossem sucedendo de ora em diante se escreverão anualmente, em virtude dela […]” (SANTOS, 1951, v.1, p.4).

O século XIX imperial herdou essa tradição historiográfica. Sobre Paranaguá, Antonina e Morretes, Antônio Vieira dos Santos, nos meados do século, escreveu sua trilogia de Memórias Históricas, dedicadas às respectivas câmaras municipais. Sem dúvida, a aparição comparativamente tardia dos primeiros esboços de historiografia dos Campos Gerais explica-se, em parte, pelas diferentes “historicidades”: as cidades do litoral são mais antigas que as dos planaltos. Havia também uma grande deficiência do ensino público na região, como de resto em todo o Brasil. A maior parte da população não sabia ler e escrever. O ensino de história (onde existia) era deficiente e fundado na memorização de conteúdos didáticos e não na pesquisa rigorosa de fontes. Além disso, inexistia o ensino público de história. Em 1875, a Câmara de Ponta Grossa, em ofício à presidência da província, solicitava a criação de uma “cadeira” de história e geografia no principal colégio da cidade.

Com o título de Instituto Paranaense, floresce nesta cidade este colégio de instrução primária e secundária devido aos únicos esforços de seu diretor, o Sr. Dr. Agostinho Martins Colares. […] Por tão envergada abnegação a bem da causa da instrução pública, pede esta Câmara a Vossa Senhoria se digne abrigá-la sob sua valiosa coajuvação criando uma cadeira de história e geografia subvencionada pela Província. (LIVRO DE EXPEDIENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE PONTA GROSSA, 14/1/1875).

Somente nas primeiras décadas do século XX, os literatos e eruditos locais (cronistas, poetas, jornalistas, memorialistas e mesmo historiadores) começaram a escrever e publicar as primeiras “histórias” de Ponta Grossa. Essa historiografia assumiu múltiplas formas, da crônica ao poema épico, da “reminiscência” ao romance histórico, da biografia de “grandes vultos” a textos propriamente historiográficos, ou melhor, com pesquisa, citação e referência de documentos. É visível a influência do “modelo” de Martinho Bahls não somente na definição de períodos e conteúdos da historiografia local, como também na permanência de determinadas concepções de história herdadas do século XIX. Mas esse problema carece de pesquisas mais detalhadas.

FONTES:

Atas da Câmara Municipal de Ponta Grossa – 1883; 1884.

Livro de Expediente da Câmara Municipal de Ponta Grossa –1875.

REFERÊNCIAS:

ARIÈS, Philippe. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

HOLZMANN, Guísella Velêda Frey. O aspecto político na história de Ponta Grossa. Minerva.Anuário da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa, n. 3, 1969

LEÃO, Ermelino de. Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná. (Suplemento). Curitiba: Impressora Paranaense, 1926, v. 7.

PEDROSO, Maria Lourdes O. De como aconteceu: um mergulho na história dos Campos Gerais. 2ª ed. Ponta Grossa: Gráfica Planeta, 2001.

SANTOS, Antônio Vieira dos. Memória histórica, cronológica, topográfica e descritiva da cidade de Paranaguá e seu município. Curitiba: Museu Paranaense, 1951, v. 1.

Autor: Antonio Paulo Benatte

Professor Adjunto Departamento de História UEPG

Ano: 2019

Revisão: 2020

 

Skip to content