Enquanto a bola oval voa em campo, o clima familiar toma conta da arquibancada
Diferente das torcidas de futebol, quem assiste aos jogos quer mesmo se divertir
O dia está agradável, temperatura amena, vinte e poucos graus. Às 10 horas da manhã saio de casa rumo a uma viagem de três horas em direção a São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, mais especificamente ao Estádio Municipal Moacir Tomelin, onde acontece uma partida válida pela liga Brasil Futebol Americano (BFA), equivalente ao campeonato brasileiro da modalidade. Espero acompanhar o enfrentamento entre Moon Howlers, time de São José dos Pinhais, e Canoas Bulls, do Rio Grande do Sul. O estádio fica no final de uma rua sem saída, em um local acanhado.
Estacionei o carro no lado contrário à entrada. O clima é interessante: as vozes se multiplicam, os gritos dos jogadores durante o aquecimento são ouvidos. Dou a volta no estádio, e ao me aproximar do portão de entrada vejo um ônibus rosa, envelopado com adesivos de empresa de transporte, alugado pelo Canoas Bulls, cujas cores são totalmente diferentes. O transporte ocupa grande parte do pequeno estacionamento, próximo de sua lotação. A entrada no estádio é gratuita.
Ao chegar às arquibancadas, além de perceber que não há nenhum lugar coberto e o sol é forte às 14 horas do sábado, a primeira coisa que me chama a atenção é o grande número de crianças. Muitas correm em volta das altas grades que separam o campo do setor de arquibancadas, outras brincam nas próprias arquibancadas. Bêbes, crianças de colo, algumas entre cinco e dez anos, e também adolescentes. Mas o público não se resume só a essa faixa etária. Adultos e idosos vestem uniformes, camisetas, bonés e outros adereços relacionados aos times que se enfrentavam ou mesmo de franquias estadunidenses, os grandes expoentes da modalidade. Nesse momento há cerca de 60 pessoas no estádio.
A estrutura do espaço é bem simples. Além da arquibancada, que ocupa uma lateral paralela ao campo, a outra lateral é cercada por muro, assim como uma das linhas de fundo. Na outra linha de fundo ficam os dois vestiários, que não foram utilizados pelas equipes.
O campo também não tem as medidas ideais para a modalidade, é menor. As marcações, entretanto, estão muito bem feitas, detalhadas e mais complexas que as de futebol. No futebol americano existem linhas que dividem o campo inteiro com espaçamentos de uma jarda, além das características sinalizações das dezenas, 10, 20, 30 e 40, feitas em tamanho grande, para facilitar o entendimento do público.
Os atletas finalizam o aquecimento. Os uniformes e materiais são profissionais e estão em boas condições. Os times vestem os capacetes e, ao finalizarem o aquecimento, saem do campo. Os gritos começam a aumentar. Como cantos tribais, ouvem-se gritos, uivos. O som aumenta, a torcida começa a acompanhar os gritos. O Canoas Bulls retorna primeiro a campo; depois, com fogos, entram os Moon Howlers. Os uivos agora ressoam pelo estádio, como uma matilha iniciando a caçada.
Os times ocupam as laterais, um de cada lado. Os árbitros entram, são sete ao todo. Os capitães vão para o centro do campo, quatro de cada equipe. O árbitro principal tira o cara ou coroa. As equipes se posicionam para o chute inicial, momento em que uma das equipes dá a saída e os times posicionam a bola no campo para o início do jogo. A bola oval voa.
Nesse momento, uma forte brisa toma o estádio, aliviando o calor, enquanto mais famílias vão chegando. Em campo, o time da casa começa com a bola, onze atletas estão posicionados de cada lado. O quarterback, posição que comanda as ações, organiza seu ataque. O estádio fica em silêncio. Duas jogadas com bons avanços, até que o terceiro ataque é incompleto, um passe forte demais. No futebol americano, quando uma das equipes não avança o território obrigatório em três jogadas de ataque, escolhe se chuta e devolve a bola ao adversário, no fundo do campo, ou se arrisca uma quarta jogada, que pode ser o suficiente para avançar os metros que faltam ou, então, caso não consigam, entregam a bola para o adversário no local onde o ataque terminou, muito próximo à zona de pontuação.
Mas a equipe da casa não avança e devolve a bola. Então o ataque do Canoas Bulls vem a campo. São atletas experientes, muito comunicativos, cantando as jogadas o tempo todo. E, com menos de três minutos, touchdown: a pontuação máxima do jogo, com uma bela corrida do camisa 28 dos Bulls, atravessando todo o campo, se livrando de agarrões e tackles, ato de conter o avanço do adversário com contato físico. Após o chute extra, que concede um ponto, 7 a 0 para os Bulls.
Outro fato comum nos jogos de futebol americano são os atendimentos médicos: só nesse começo de jogo, ocorrem dois, um para cada equipe. Nas duas oportunidades, após pancadas mais fortes, os jogadores acabaram sentindo o local de contato. Os times têm suas próprias comissões médicas, que não chegam a ser comissões completas porque normalmente são poucas pessoas. A atendente dos Bulls é uma figura à parte: roupas coloridas, uma animação contagiante, e o cabelo separado em duas tranças. Metodicamente organizada, carrega duas caixinhas com sprays e medicamentos de rápido efeito.
Durante a parada para o reinício do jogo, uma cena me chama muito a atenção: duas mulheres com camisetas do time da casa, junto com uma adolescente e três crianças vêm em direção às arquibancadas, conversando com várias outras pessoas, até que chegam próximas ao local em que eu estava. Aproximam-se de uma família e uma das mulheres pergunta sobre a gravidez da mulher do casal; diz que fazia tempo que não a via nos jogos, conversam durante alguns minutos, trocam risadas e se despedem, com a mulher com o uniforme dos Moon Howlers agradecendo por estarem ali. Marcaram de se encontrar novamente. O ambiente familiar toma conta do estádio, familiares dos atletas do Canoas Bulls conversam com a torcida do Moon Howlers, o clima é pacífico, diferente do estádio barulhento quando os times entraram.
Já são mais de 150 pessoas no estádio. Reparo também que, assim como alguns que estão ali não entendem o funcionamento do jogo e aproveitam muito mais o convívio da arquibancada, existe também um número razoável de torcedores com ótimo entendimento. Outra família que estava à minha frente era um bom exemplo: Ricardo, um homem de meia idade sem nenhuma característica chamativa; Mariana, levemente mais alta que Ricardo e que parecia aproveitar muito mais o sol do que o jogo; e seu filho Pedro, de 13 anos, que apreciava muito a experiência. A família se divertia, o pai e o filho discutiam as jogadas, as táticas e o posicionamento dos atletas. Pedro ria muito. Ricardo acompanha o filho, vestia uma camisa do Indianapolis Colts, franquia do NFL.
— Pedro, entendeu o que eu tinha te falado? A melhor posição não é o quarterback, jogando no fundo da defesa você vê todo o jogo, é melhor.
— Pai, não né. Tem que ter a bola nas mãos, jogar.
E Pedro ria do pai.
— Não adianta mesmo, né, Pedro? Você gosta da ação.
— É óbvio pai, mas o quarterback também vê o jogo todo, mas precisa ser ainda melhor porque tem que ser rápido.
No final da partida, Ricardo me conta que era o quarto jogo em que traziam Pedro, e com certeza voltariam no próximo. Mariana gosta do ambiente agradável da torcida. Em jogos de futebol é mais raro a família ir. “As vezes fica estranho, tem muito xingamento, empurra empurra. Não é como aqui”.
A cena de pessoas que entendem o jogo e explicam para familiares e amigos se repete. Me movimentando pela arquibancada, enquanto ainda conseguia. Essa era a imagem que mais se repetia, junto das crianças brincando, cenas que exemplificam bem o estágio, ainda em desenvolvimento, do esporte no Paraná. A propósito, os Bulls voltam a marcar, 14 a 0.
Mais famílias chegam; grupos grandes de amigos, também. A arquibancada começa a lotar, situação atípica para quem acompanha futebol, ninguém quer perder nenhum lance. Isso reforça a ideia de o evento representar muito mais uma atividade de lazer do que a briga pelo resultado dos times – aqui, diferente do futebol, eles são adversários, não inimigos. Volto para o local da arquibancada em que estava, um dos poucos com pequena sombra. Então me chama atenção a transmissão ao vivo, realizada por membros do Moon Howlers em uma cabine na lateral oposta. Alguns alto falantes pelo estádio transmitem a narração, bem imparcial, por sinal.
Em campo, novamente um atleta recebe atendimento médico, cena que se repetiu durante todo o jogo. Por falar em jogo, os Moon Howlers não jogam bem, quando avançam não conseguem pontuar; os Bulls, bem treinados, avançavam rápido e sempre pontuam, marcando mais seis pontos: outro touchdown, mas sem o ponto extra, pois optaram por uma jogada valendo dois pontos, bem próxima à zona de pontuação. Não deu certo. Está 20 a 0.
Vem o intervalo de 15 minutos. Vou comprar água. Atrás das arquibancadas, há food trucks vendendo comida e bebidas. A todo momento aviões saem do aeroporto Afonso Pena, próximo ao estádio.
Voltando para a arquibancada, vejo uma pessoa de muletas cruzando o campo. Espero do lado de fora para conversar com ele. Henrique, 27 anos, tem a minha altura e joga como corredor, no ataque. Se lesionou no treino, quando outro companheiro caiu em cima de seu joelho, que virou, rompendo o ligamento. Ficará de seis a oito meses fora de combate, com fisioterapia.
Reparo um tom áspero entre os atletas dos Bulls, que descansam na tenda bem na minha frente. Mesmo ganhando, alguns reclamam com os companheiros.
— Tem que jogar sério, sem ficar girando de um lado para o outro – esbraveja o camisa 74. Em sua camiseta, o nome Guizão. Ele, inclusive, ostenta cabelos grisalhos e ficaria mais irritado durante o segundo tempo, que recomeça.
Touchdown Bulls, novamente com um ataque rápido, faz grandes avanços. Desta vez, a jogada extra deu certo: 28 a 0. E novamente vejo famílias conversando sobre voltar no próximo jogo.
O Moon Howlers novamente tem um ataque ruim. Mas, agora, a defesa dos Bulls rouba a bola, já próxima à zona de pontuação, na parte final do campo, de ambos os lados. No jargão da modalidade, essa área é conhecida como endzone. Não demora muito e 35 a 0. Nesse momento, os atletas do time da casa estão cabisbaixos. É difícil manter a concentração perdendo por tantos pontos.
Nesse momento, acontece uma cena digna de filmes hollywoodianos sobre adolescentes: familiares dos Moon Howlers começam a discutir, mas como zoação.
— É culpa do ataque sim, onde já se viu não marcar pontos – argumenta uma senhora de cinquenta e poucos anos.
— Mas com a defesa tomando trinta pontos fica difícil – diz outro senhor na mesma faixa de idade retruca.
— Mas se o seu filho acertasse algum passe ajudaria – retruca a senhora, e as pessoas por perto riem bastante.
Aí o senhor, alto e com voz postada, pensa e responde:
— Ele pode não acertar os passes, mas não fica olhando o jogo do lado de fora.
Os dois sentam e a minha atenção se dispersa. Me espanto, ainda continuam chegando pessoas. As arquibancadas lotam de vez e o terceiro quarto está se encerrando, o que significa que, contando as paradas tradicionais e o último quarto da partida (os quartos têm quinze minutos), restam uns trinta minutos para acabar o jogo.
O nível técnico cai bastante, o cansaço e o fato de o jogo estar resolvido explicam a situação. Mas isso não impede os Bulls de voltarem a marcar. 42 a 0. Agora os uivos e gritos são dos visitantes, que batem nas pernas e gritam. Como um ritual mesmo, a cada jogada.
Final de jogo, e o time da casa esboça uma campanha pelos pontos de honra, mas não é o dia deles. Acontece mais um roubo de bola dos Bulls, que vibram muito. Então o jogo termina. A torcida aplaude muito os times, que formam duas filas e se cumprimentam, pela honra da partida e pelo espírito esportivo. Após esse cumprimento, os atletas se dividem no campo, vários descansam ali mesmo, muitos vem até a grade conversar com amigos e familiares, outros posam para fotos.
Os times se misturam e tiram uma foto. Os familiares entram no campo. O som das risadas se multiplica, a felicidade é nítida. É como se todo o esforço para fazer o jogo seja recompensado, apesar do resultado. Os atletas não se comportam mais como equipes e sim como familiares, marcando o próximo jogo.
Saindo do estádio, vou até o carro. Observo a rua acima e crianças brincam, umas jogam bola, outras correm e as mães observam do portão. O sentimento de tranquilidade e alegria do estádio parece transbordar para fora. Uma visão que a tempos eu não tinha.
Ficha técnica:
Reportagem e fotos: João Gabriel Vieira
Edição e Publicação: João Gabriel Vieira
Supervisão de produção: Marcos Zibordi
Supervisão de publicação: Candida de Oliveira e Muriel E. P. Amaral