O agro é pop: poluidor orgânico persistente

O agro é pop: poluidor orgânico persistente

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Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do planeta; apreensões de insumos ilegais cresceram 80% neste ano

Professor Renato durante a aula. Foto: Yuri A.F. Marcinik

Não foi difícil definir o especialista para entrevistar: o professor Renato Alves, do departamento de Economia da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), especializado em Agronomia, havia sido minha fonte em outra reportagem sobre agrotóxicos. Desta vez, após o convite, ele pediu uma semana de prazo. Eu entenderia o pedido na entrevista: ele preparou uma aula, com duração de uma hora e meia, incluindo slides e a presença de três alunos auxiliares.
Ao chegar no departamento de Economia, eles estão no corredor. Começamos a conversar e alguém interrompe: o professor nos espera. Na sala, com os slides prontos, o professor de cabelos longos e óculos de lentes grossas nos saúda. O único indício de formalidade da entrevista era o gravador.

Verdades tóxicas

O material de apresentação é robusto: 18 slides mostrando causas e consequências do uso de agrotóxicos. Assusto com a clareza do professor expondo a angustiante realidade da nossa saúde alimentar, que vale muito pouco para aqueles que nos fornecem alimentos.
Com moderado sotaque cearense, o professor exibe definições jurídicas, como a lei que rege o uso de agrotóxicos, extensiva a praticamente todos os tipos de agentes “cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos e substâncias e produtos, empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento”.
Sem delongas, salta para definições teóricas. Recorrendo a autores como Sílvio Roberto Penteado e Hasime Tokeshi, somos apresentados a conceitos de degradação do solo causado pelos chamados “protetivos agrícolas” – mas o professor faz questão de dizer que se nega a usar qualquer outro termo que não seja “agrotóxico”.
Isso porque exterminar pragas desbalanceia o ecossistema. Os predadores naturais, como sapos, irão perder alimento primário, acarretando sua extinção, a de seu predador, a do predador do predador… Em algum momento, o problema chega ao ser humano, no topo da cadeia alimentar.
A explicação continua e o quadro só piora. O professor explica que a contaminação por agrotóxicos é agravada quando não se respeita os intervalos para recomposição do solo entre os plantios , também chamado de período de “carência” do solo – em alguns casos, a terra precisa ficar até dois anos sem plantio, tempo demais para as demandas da competitividade da entidade que laconicamente é referida como “mercado”.
E mais: pelo ar e pelo solo, plantações vizinhas podem ser atingidas por agrotóxicos. Não por acaso, as Diretrizes para o Padrão de Qualidade Orgânico da IBD Certificações (órgão privado reconhecido pelo Ministério da Agricultura para certificação) prevê que a produção orgânica deve estar a três quilômetros de distância de qualquer área de cultivo tradicional.

Dados que causam azias

A aula segue com estatísticas do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). O último levantamento, de 2010, constatou que em “15 das 20 culturas analisadas foram identificados agrotóxicos ativos e prejudiciais tanto para a saúde dos trabalhadores rurais como para a dos consumidores”.
Substâncias como o endosulfan, acefato e metamidofós, ainda permitidas no Brasil, foram encontradas em pepino, pimentão, cebola, alface e tomates. Segundo a própria Anvisa, elas possuem grau elevado de toxicidade, podendo causar problemas neurológicos, reprodutivos, de desregulação hormonal e câncer. Nessa hora, só consegui pensar que talvez não devêssemos reprimir tão veemente o hábito infantil de repelir legumes e verduras…
A apresentação seguiu fornecendo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Diante da tabela do Censo Agropecuário, tive o primeiro choque sentido fisicamente no meu corpo: 88% da produção de laranja, alimento que consumo muito, usa produtos disfuncionais. Os dados estão defasados, são de 2006, a pandemia prejudicou a atualização – hoje serão ainda piores?
A apresentação então envereda para o histórico de ilegalidade do agrotóxico Paraquat. Tratado como mutagênico e cancerígeno, foi classificado como ilegal pela Anvisa em 2017. Seu uso deveria ter acabado em 2020. Porém, considerando-se que o Paraquat foi o herbicida mais apreendido pela Receita Federal no primeiro trimestre de 2022, constatamos que apenas a legislação não basta. Mas o que move esse mercado?

Mais verdades tóxicas

A aula encaminha-se para o final, mas ainda vamos nos intoxicar um pouco mais de verdades indigestas. Segundo a ONG Public Eye, dos R$ 100 bilhões movimentados pelo mercado clandestino de agrotóxicos no mundo, um terço foi gasto por brasileiros em 2021, crescimento de 26,4% em relação ao ano anterior. Plantações de soja são as que mais recebem esses produtos ilegais. “Os únicos beneficiados são os que o vendem”, lembra o professor. Ele ainda menciona medidas alternativas aos agrotóxicos, como adubos orgânicos e aplicação de inimigos naturais das pragas.
Ainda que terminemos a aula com a clara sensação de que ainda havia muito a ser dito, foi interessante notar o empenho do professor Renato Alves com a conscientização, fazendo palestras e mantendo o canal “Professor Vegano” no Youtube.
Vegano há mais de quatro anos – faz questão de mostrar sapatos e cinto de couro sintético – o professor afirma que crenças populares devem ser combatidas com informação. “Desde sempre nos dizem que comer carne é uma questão de proteínas. Hoje, vemos que tudo faz parte de uma narrativa para gerar um excedente de produção – principalmente na criação de gados – mantido unicamente para continuar o lucro de todo esse sistema que se mantém através da intoxicação dos alimentos e práticas danosas ao meio ambiente”.
Me despeço do professor lembrando da última tirada de seu leque amplo de bom humor: “O agro é pop: poluidor orgânico persistente”, definição cunhada na Convenção de Estocolmo de 2001. “O marketing pelo menos é honesto”, ironiza.

 

Ficha técnica:

Reportagem e infográfico: Yuri A.F. Marcinik

Edição e Publicação: Yuri A.F. Marcinik

Supervisão de produção: Marcos Zibordi

Supervisão de publicação: Candida de Oliveira e Muriel E. P. Amaral

 

 


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