A cultura, história, literatura e conhecimento indígena foram celebrados pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), na última semana, nos dias 27 e 28. O Coletivo de Estudos e Ações Indígenas (Ceai) promoveu o Abril Indígena, evento que debateu a vivência dos povos indígenas, por meio de apresentação de trabalhos e lançamento de 10 obras literárias. Intitulado como ‘Coleção Retomadas’, o conjunto de livros trazem literatura indígena em seis idiomas, incluindo Guarani e Kaingang.
Para conversar sobre a temática dos livros, reunidos e organizados pelo Ceai ao longo de dois anos, os autores estiveram presentes na Universidade. Uma delas Merremii Karão, escritora do livro ‘Wúpi Taowá: Vestindo-se de Linguagens’. A obra é o primeiro livro de arte indígena feito por um indígena e é baseado no povo indígena Karão Jaguaribaras. “As histórias, poesias Taowás e críticas fazem parte do meu contexto educacional quanto indígena Karão Jaguaribaras. Tudo que está neste livro são saberes repassados de geração após geração, parte deles mais antigos que a cronologia ocidental possa datar”, informa.
Durante o processo de construção do livro, Merremii escrevia e desenhava imagens em papel A4. “Fui fotografando as Taowás já desenhadas e brincando com o Word, daí se transformou na maravilha de obra que é este livro”, destaca. Toda a construção de design do livro foi feito pela autora. “É importante que a cultura indígena seja visibilizada pelo próprio indígena nestes espaços acadêmicos, porque existir ela já existe, porém não referenciada como deve ser”. A Universidade foi construída em território indígena, reforça Merremii. “Através da literatura indígena podemos falar sobre nós e referenciar nossa existência e a nossa visão”.
Olívio Jekupé lançou na UEPG seu 25º livro. Intitulado ‘Coronavírus nas Aldeias’, o livro traz experiências vividas pelo autor em aldeias de São Paulo, durante a pandemia de Covid-19. “Pensamos que essa doença não iria chegar na aldeia, mas chegou e tivemos que fazer uma grande ambulatório nas aldeias para atender os guaranis”. O livro nasceu enquanto Olívio estava internado pela Covid-19. O Coronavírus não é novidade para os indígenas, segundo o escritor. “Trazem vírus pra gente desde 1500, isso não é novidade para nós”, ressalta. Os passos de Olívio vêm de longe – escritor desde 1984, ele foi um dos iniciantes na literatura no Brasil. “Fico feliz em saber que temos vários escritores indígenas atualmente. Hoje vemos conquistas indígenas e é importante passá-las adiante”.
Passar para frente a história e conhecimento também é especialidade de Florêncio Rekayg Fernandes. O escritor lançou dois livros no evento: Ritual dos Mortos e a Lenda do Fogo, baseados em histórias que ouvia desde a infância, pelos avós. “Meu avô autorizou que eu publicasse, para que outras pessoas pudessem conhecer e que a cultura não morresse”. Transmitir o conhecimento ancestral mantem a memória e cultura vivas, segundo ele. “Pensamos principalmente nas crianças indígenas, que têm acesso muito rápido a tecnologias, e a gente tem medo de que ela perca a nossa cultura”, adverte. Produzir também auxilia no futuro das pesquisas. “Também produzimos literatura para pessoas possam utilizar nosso material para estudos, não só pelos indígenas, mas também pelos não-indígenas, principalmente”, complementa.
“Atrás dessa promessa de uma ‘identidade nacional’ não há coisa alguma para nós”, afirma Arlete Schubert Tupinambá. No livro ‘Wayrakuna: Polinizando a vida e semeando o bem viver’, a autora assume a condição indígena como um chamado. “É um manifesto e uma denúncia para nos saber e nos fazer existir. Nos existencializamos em uma nova pele ancestral em um modo às vezes sofrido e violento”, explica. O livro se tornou um desafio para sentir e pensar a trajetória do coletivo. “O processo de escrever no e com o corpo foi coletivo e cheio de amorosidade e afetos umas com as outras. Todo esse processo é tão especial e singular que, simultaneamente, fala e cala muitas memórias”.
De tudo o que o coletivo ouviu, sentiu e falou, vieram as memórias: “da dor de ser educada/treinada para calar as tensões que nos habitam para não conflitar com a narrativa de não ser indígena nesse território onde somos tratados como menores ou desqualificadas. O livro quer ser um pouco dessa denúncia. Um chamado para que as academias descaravelem-se”, finaliza.
Trabalho em equipe
Para que o evento acontecesse, alunos membros do Ceai trabalharam ao longo de dois anos para selecionar as obras que seriam lançadas. Na semana do início das atividades, muita correria. Entre organização das salas e transporte dos autores para a UEPG, Julia Isabela de Souza, aluna indígena do segundo ano de Pedagogia, se diz grata. “Fiquei um pouco cansada pela correria, mas quando vimos o resultado final confesso que fiquei bem feliz e alegre”. Julia celebra o fato de participar de um evento que trouxe autores indígenas. “Falar que existe a literatura indígena dentro das universidades foi muito gratificante para mim, porque isso nunca foi feito aqui, então celebrar isso no mês dos povos indígenas foi bem legal”.
“Foi extremamente emocionante participar de tudo e ver a quantidade de gente interessada pelo assunto, pessoas que se propuseram a perguntar, a questionar e a saber mais sobre a cultura dos povos indígenas”, conta a estudante Monique dos Santos. Para ela, o evento foi uma das melhores experiências que viveu na UEPG. “É incrível lembrar de tudo o que aconteceu e ouvir dias depois o eco que o evento fez, a forma como ele ressoa pelas paredes da UEPG, por entre os alunos. Tudo muito gratificante”, ressalta.
Reflexão
A coordenadora do Ceai, professora Letícia Fraga, conta que o evento superou as expectativas. “Ouvi muito durante todas as atividades falas de pessoas que expuseram pro coletivo da importância do que estavam assistindo. Foi muito importante para as pessoas presentes e para a instituição em si”, destaca. Segundo Letícia, trazer para a Universidade o debate das causas indígenas traz à tona problemas urgentes no Brasil, como o racismo. “É uma chaga na nossa história, porque muitas pessoas se recusam a aceitar e a estudar esse assunto e o racismo estrutura a nossa sociedade”, explica.
Além da importância de discutir racismo, a educação sobre cultura e história indígena em instituições de ensino também são importantes, segundo Letícia. “É obrigatório do ponto de vista das instituições de ensino superior, não somente a UEPG, que essas histórias sejam ensinadas de forma transversal, que se discutam relações étnico-raciais, para que futuros profissionais possam fazer a construção de uma sociedade antirracista”. Os debates precisam ser sistemáticos. “Devemos explicar o racismo, a diferença entre racismo e preconceito, trazer autores indígenas e negros e ouvir o que eles têm a dizer, para que as pessoas posam entender um pouco dessa violência da qual nós pessoas brancas somos reprodutores”. O Ceai pretende ainda organizar mais eventos para celebrar a produção indígena. “Pretendemos trazer materiais e indígenas, para que a gente possa escutá-los, porque a temática indígena é transversal, você precisa discutir educação, meio ambiente, saúde e várias coisas, já que a presença indígena está em todos os lugares”.
Texto: Jéssica Natal | Fotos: Jéssica Natal e Maurício Bollete – CCOM-UEPG