Acervo Hugo Reis agora disponível no Memórias Digitais 

Neste Dia Internacional dos Arquivos, o repositório online Memórias Digitais publica na web parte relevante do acervo do jornalista Hugo Reis (1884-1934), intelectual que dá nome aos Arquivos Históricos do Museu Campos Gerais (MCG), da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). A novidade integra ações do Núcleo de Digitalização durante a pandemia, com objetivo de maior disponibilização de documentações ao acesso público e gratuito pela internet. 

O redator e repórter Hugo Reis, aliás, já em 1913 noticiava a circulação de boatos em Ponta Grossa sobre a chegada da “peste bubônica”. Mais tarde, vai acompanhar os impactos da gripe espanhola de 1918, além de diversos outros flagelos que desafiavam a saúde da população local. O jornalista se destaca na cobertura da Guerra do Contestado, tornando-se fonte de informação para outros periódicos do período. 

Reis atua como redator principal e chefe de redação por mais de uma década – de 1910 a 1912 em O Progresso, que circulava três vezes por semana; de 1913 a 1920, no Diário dos Campos. Entre as pautas que mobilizam atenção do jornalista no período estão a Primeira Guerra Mundial, o saneamento básico, a educação, a abertura de estradas, a nascente vida cultural, a Sociedade Operária, campanhas políticas e, claro, a religião.   

Dada a relevância de Hugo Reis para a história intelectual, da imprensa e do jornalismo em Ponta Grossa e no Paraná (como atestam as pesquisas), no conjunto de exposições que marcaram a reabertura do MCG em 12 de abril de 2019 estava a mostra ‘Linotipo: a imprensa nos tempos de Hugo Reis’ – uma pequena, mas simbólica homenagem à atuação e à memória do jornalista. Dois anos depois, a presente publicação digital de seu acervo continua e, de certa forma, reforça essa referência histórica. 

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A disponibilização de documentos e fotos no Memórias Digitais vem acompanhada de três textos do diretor do MCG, Niltonci Batista Chaves, pesquisador de Hugo Reis, que apresentam o acervo e contextualizam vida e atuação do intelectual: 

 

1. Acervo Hugo Mendes de Borja Reis

Niltonci Batista Chaves

 

 O ano era 2005. Apesar de relativamente próximo do ponto de vista temporal, nesse momento as redes sociais davam seus primeiros passos e estavam longe de ser populares e abrangentes como nos dias atuais. 

Em meados dos anos 2000, encontrar alguém pela internet era algo que ainda exigia um considerável esforço e o neologismo “stalkear” sequer fazia parte do léxico corrente. 

Lembro com clareza de um final de tarde – mais precisamente no dia 10 de março de 2005 – no qual cheguei em casa e abri minha caixa de e-mail para ver “a correspondência” do dia. Nesse momento me deparei com uma nova mensagem com o enigmático título “Hugo Reis, meu avô!”, que tinha como remetente uma total desconhecida chamada Ana Maria Tebar. 

Confesso que minha primeira reação foi de apreensão. Como pesquisava o “Hugo” (o chamo assim, pois o historiador/pesquisador tende a criar uma certa intimidade com seus objetos de estudo) desde o início da década de 1990 e como já havia publicado – no impresso e no espaço digital – diversos textos em que ele aparecia como um jornalista com intensa militância em Ponta Grossa no início do século XX, temi que sua família (a partir do contato fortuito com um desses textos) quisesse confrontar ou questionar algo que eu, porventura, tivesse escrito sobre o jornalista carioca que se radicou em Ponta Grossa em 1908 e que participou ativamente da vida cultural e política da cidade durante os dezesseis anos que aqui residiu. 

Como o que a vida espera da gente é coragem – conforme ensina Guimarães Rosa –, respirei fundo e abri a mensagem que dizia: 

Caro professor Niltonci Batista Chaves 

Sou neta de Hugo dos Reis (Hugo Mendes de Borja Reis), colaborador do Diário dos Campos na década de 20 e, pesquisando na Internet, encontrei um artigo seu no mesmo jornal, datado de 25 de Julho de 2004 – “Hugo dos Reis e o espiritismo em Ponta Grossa”. Fiquei muito emocionada e impressionada com a riqueza de detalhes sobre a vida de meu avô nesta época da qual nós, da família, temos muito poucas referências. 

Ele morreu aqui em São Paulo, jovem e bem antes do meu nascimento e os relatos sobre as atividades dele em Ponta Grossa vieram da memória de meu pai e de meus tios, mas sempre de forma fragmentária. 

Guardo comigo fragmentos de escritos, a maior parte deles psicografados, de meu avô, incluindo o mais famoso, “A Túnica de Cristo”, ainda no original do jornal em que foi publicada e do qual tirei cópias, para preservá-lo. 

Tinha muitas referências sobre este lado espírita, sendo meu avô, segundo relatos familiares, também um medium espírita, com o dom da psicografia e da premonição de fatos que vieram a se confirmar. 

Ele também tinha uma farmácia homeopática doméstica, com a qual atendia e medicava as pessoas que o procuravam. 

Não tinha, porém, muitas referências a respeito de sua atividade de militância socialista, que seu artigo menciona e que para mim foram fatos novos. Contava meu pai que meu avô e a família tiveram que sair às pressas de Ponta Grossa, pois o jornal (não sei qual jornal) foi empastelado, por conta de uma causa política abraçada por ele e que desagradou os adversários. Será que isso procede? 

Estou escrevendo ao senhor por conta da satisfação que tive em ler seu artigo, pelo qual muito agradeço e também para saber como foi que o senhor se interessou pela figura de Hugo dos Reis. Gostaria também de saber se existem outros relatos desta época, seus ou de outras pessoas. 

Muito grata pela sua atenção, 

Ana Maria Tebar 

(meu nome de solteira é Ana Maria de Borja Reis e sou filha de Théo de Borja Reis (ou Théo dos Reis), filho mais velho de Hugo) 

 

Lido o texto, respirei fundo novamente. Desta vez, a respiração veio carregada de um profundo sentimento de emoção e gratidão. Emoção por perceber que meus textos sobre o Hugo começavam a chegar a um público cada vez maior. Gratidão pela generosidade das palavras de Ana Tebar, a neta do Hugo que, a partir de então passou a travar um diálogo constante comigo por e-mail e, mais tarde, pelas redes sociais. 

Foram muitas mensagens trocadas. Enviei para ela um pacote de livros (boa parte de minha autoria ou co-autoria) nos quais o nosso Hugo aparecia como personagem relevante. Mandei edições da série “Visões de Ponta Grossa”, exemplares do “Espaço e Cultura: Ponta Grossa e os Campos Gerais”, do clássico “Cinco Histórias Convergentes” (todos esses com o selo da Editora da UEPG) e do “A Cidade Civilizada: Discursos e Representações Sociais no Diário dos Campos – década de 1930” (Editora Aos Quatro Ventos). 

Após Ana e outros integrantes da família realizarem as leituras, vieram novas resenhas virtuais. Os textos ajudaram a desvelar fatos sobre a história de vida e a personalidade do Hugo. Por outro lado, também recebi informações preciosas – como a possível vinculação do jornalista à Maçonaria e aos círculos políticos nos quais ele estava inserido em São Paulo – que muito me auxiliaram a continuar as pesquisas sobre ele em Ponta Grossa. 

Mas a generosidade da família Borja Reis não parou por aí. A partir dos contatos iniciais e percebendo a importância do Hugo para o campo jornalístico e cultural ponta-grossense, Ana Tebar me confiou a doação de uma rica e, até então inédita, documentação: textos transcritos por Olga de Borja Reis, filha mais nova de Hugo, a partir de originais escritos pelo jornalista durante o tempo em que viveu em Ponta Grossa. Muitos dos escritos jamais foram publicados, mas expressam valores, perspectivas e filiações filosóficas e intelectuais do jornalista. Apontam também para a rede de intelectuais na qual, de certa forma, ele se inseria (por contato, alinhamento ou inspiração). Existem escritos dirigidos a Ruy Barbosa (uma das maiores referências políticas de Hugo), Sebastião Paraná, Lins de Vasconcelos, Dario Vellozo, Raul Gomes, Rocha Pombo, Emiliano Perneta, entre outros.  

A documentação contém ainda diversos textos de orientação religiosa – Hugo foi o primeiro expoente do espiritismo em Ponta Grossa – e outros dirigidos aos trabalhadores – ele se autodefinia como um socialista humanitário e teve profunda participação no processo de organização dos trabalhadores ponta-grossenses no começo dos Novecentos; existem textos ficcionais (como uma peça teatral expondo o cotidiano da redação do Diário dos Campos), reproduções fotográficas e de documentos pessoais. Por fim, também faz parte desse conjunto documental, um exemplar original do Diário dos Campos com o poema “A Túnica de Cristo”, o mais conhecido texto espírita de Hugo.

Recebi a documentação em 2005, com a autorização da família para utilizá-la para fins de pesquisa. Deixei-a temporariamente acervada e à disposição de pesquisadores no Centro de Documentação e Pesquisa do Departamento de História da UEPG e, em 2018, ao assumir a direção do Museu Campos Gerais, levei-a para esse espaço. Nesse mesmo momento e compreendendo a relevância desse intelectual e mediador cultural, formalizei o pedido junto ao Conselho Universitário para que os acervos documentais do MCG passassem a se chamar Arquivos Históricos Hugo Reis. 

Desde 2005, quando esse processo teve início, escrevi e orientei diversos trabalhos acadêmicos em que o Hugo aparece como personagem e objeto de investigação de historiadores que estudam Ponta Grossa e os Campos Gerais. Em 2019 apresentei o trabalho que me valeu a Livre Docência na UEPG – denominado “Percursos de um Historiador: História Local, Imprensa e Intelectuais (Hugo Reis 1908-1924)”, lançando luzes sobre essa documentação. 

Agora, em 2021, passados 16 anos do contato inicial com Ana Tebar e outros membros da família, tenho a honra de contribuir com a disponibilização digital desse valioso conjunto documental por meio do Repositório Memórias Digitais. Compreendo que é a melhor forma de retribuir a sensibilidade da família Borja Reis e, ao mesmo tempo, valorizar a trajetória de Hugo Mendes de Borja Reis, um dos maiores nomes da história do jornalismo paranaense! 

 

2. Hugo dos Reis e o espiritismo em Ponta Grossa* 

 Niltonci Batista Chaves

Em meados do século XIX, Auguste Comte, francês de Montpellier, provocou uma verdadeira revolução no pensamento ocidental com sua filosofia positivista. Comte afirmou que o domínio do conhecimento científico seria capaz de fazer com que a humanidade superasse todas as suas dúvidas e incertezas e “evoluísse” em direção ao seu estágio superior de desenvolvimento. Vale ressaltar que, naquele momento, as ciências eram vistas como detentoras de verdades plenas e inquestionáveis, concepções superadas no século XX. 

Nesse contexto, outro francês, contemporâneo de Comte, também se projetou por suas ideias. Nascido em Lyon em 1804, foi batizado como Leon Rivail, mas tornou-se conhecido pelo nome de Allan Kardec. Maçom e de formação positivista, Kardec é considerado o sistematizador do espiritismo, doutrina que logo se expandiu por toda Europa e por países de outros continentes, principalmente após a publicação de “O Livro dos Espíritas” (Kardec, 1857). 

No Brasil, extremamente receptivo ao pensamento europeu, tanto o positivismo de Comte, quanto o espiritismo de Kardec se disseminaram rapidamente. O positivismo estará presente no processo de implantação da República no país, não sendo, portanto, mera coincidência, a impressão do lema positivista “Ordem e Progresso” na bandeira nacional. 

Quanto ao espiritismo, seus primeiros registros no território brasileiro datam de 1865, com a fundação do “Grupo Familiar de Espiritismo”, na cidade de Salvador. Pouco depois, em 1873, tendo como lugar o Rio de Janeiro, foi criada a “Sociedade de Estudos Espíritas”. Em 1881, foi realizado o “Primeiro Congresso Espírita no Brasil”. 

Entre os espíritas brasileiros mais conhecidos do século XIX, estão o Barão do Rio Branco – destacado diplomata brasileiro, e Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti – médico cearense que dedicou parte de sua vida ao espiritismo. 

Hugo Mendes de Borja Reis, jornalista carioca nascido em Valença, chegou a Ponta Grossa no ano de 1908, então com 24 anos de idade. Buscava uma cidade com clima ameno que o ajudasse na recuperação de suas enfermidades, mas que ao mesmo tempo não fosse um local isolado dos centros urbanos com os quais estava acostumado. Ponta Grossa, nesse caso, serviu plenamente aos seus objetivos. 

No mesmo ano, Hugo Reis já estava militando no jornalismo local. Foi redator, diretor e sócio-proprietário do Diário dos Campos ao longo de um período de quase duas décadas. Letrado, Reis pode ser considerado um dos primeiros intelectuais da história da imprensa ponta-grossense. Homem de sua época, se mostrou sempre em sintonia com as discussões filosóficas daquele período. 

Hugo Reis se autodenominava socialista e espírita. Aparentemente antagônicas, tais filosofias o acompanharam por toda vida. Como socialista, Reis utilizou constantemente as páginas do Diário dos Campos para defender os direitos dos trabalhadores; apoiou e participou dos movimentos grevistas ocorridos na cidade entre as décadas de 1910 e 1920; integrou o Centro Livre-Pensador de Ponta Grossa; foi dirigente de órgãos de classe, como a Sociedade Beneficente dos Operários de Ponta Grossa; criou e colaborou com publicações de jornais libertários, com destaque para “O Escalpello”, de 1908. 

Como espírita, Reis também utilizou o Diário dos Campos para transmitir mensagens do kardecismo aos leitores através de pequenas notas ou de extensos artigos. Além disso, em 1921, criou a “Revista Social de Espiritismo”; foi colaborador destacado do Centro Espírita São Francisco de Assis de Apoio aos Necessitados, criado em Ponta Grossa no ano de 1912; promoveu inúmeras campanhas de caridade e organizou Congressos e Conferências, como esta divulgada no Diário dos Campos em outubro de 1917, e que destacamos nesta coluna. 

Convite da Conferência Espírita em Ponta Grossa – DC, 1917

Em 1924, após longa e relevante passagem por Ponta Grossa, deixou a cidade. Faleceu em São Paulo no ano de 1934, aos 50 anos de idade. 

 

versão editada pelo autor de texto originalmente publicado na coluna Fragmentos, no jornal Diário dos Campos, em 25 de julho de 2004. 

3. Percursos de um historiador da história local, imprensa e intelectuais (Hugo Reis 1908 – 1924). (PDF)

Acompanhe também o relato de Ana Maria Tebar neta do Hugo de Borja Reis

A coleção digital pode ser acessada aqui.

Ótima consulta e boa leitura!

 

 

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